segunda-feira, 12 de março de 2018

Na ausência da luz

egon_schiele (pintor), cego 1913








Um pouco mais de sol - eu era brasa,         
Um pouco mais de azul - eu era além.        
Para atingir, faltou-me um golpe d'asa...   
Se ao menos eu permanecesse àquem...    

Mário Sá-Carneiro, 1.ª estrofe de Quasi    



















(Na ausência da luz) 
Há dedos sem pele a arengar
as marcas primevas, indomáveis,
ainda sem identidade, ininteligíveis 
Ficam as mãos enoveladas num novelo  
de linhas desconexas, inviáveis de dobar,
pelos gestos imperceptíveis da comoção
Invisíveis escorrem bagas cordas no vazio
das vagas coisas por iniciar

Num orvalhar arrítmico de sístoles,
o esforço sobrenatural esgota-se
na sulfúrica composição que sobe
à boca, em silêncio, sem ar de respirar,
e o pressentimento bicho desperta
o medo que se enrola no âmago do ser
No gutural ensaio grunhido vacila
o bafo no arredondar da forma do fonema

Não há tecla que defina o claro e a cor,
os restos de arco-íris e os relâmpagos da criação
O probiótico da palavra arrota  sílabas mudas  
e, assim, só inícios balbucios borbulhantes
na garganta, impossíveis de pronunciar
Perde-se o acto instantâneo!
Sem gestação nem parto, fica abortada
a eternidade efémera do sentir do dizer e do ler

hajota



16 comentários:

  1. Fica-se como que suspenso no ar....
    Beijos e abraços
    Marta

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  2. Apenas sobrevivemos porque sabemos que, após a escuridão, virá a luz.
    Magnífico, como é hábito!

    Beijinhos, Agostinho :)

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  3. Fora da Luz, o Caos, talvez o Nada!
    Que a boa luz te guie, Poeta!

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  4. "Na ausência da luz" como que "recapitulamos" a matriz da nossa sombra. O silêncio torna-nos propícios a todos os pressentimentos.
    Eu, não encontro as palavras certas para falar deste seu poema, Agostinho. A hesitação entre o que sinto e o que pressinto devolve-me as palavras.
    Um grande beijo meu Amigo.

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  5. Aguardo desesperadamente esses dias de luz.
    Abraço

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  6. Há sempre luz nas palavras que respiram
    mesmo por instantes
    quando são escritas em troco de nada
    e tanto prazer dão a quem as escreve
    ou lê.
    Já disse - a poesia não quer salvar o mundo
    só ajudar.
    Por vezes basta uma conjugação de estrêlas
    Abraço amigo

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  7. Há sempre um quase nada que nos falta para que nos sintamos realizados.
    Para alcançar esse 'quase' é preciso, muitas vezes, uma vida inteira, e acabamos, já perto do fim, por não ver a claridade que tanto ansiamos.
    Mas nem sempre é assim, verdade Poeta?
    Como bem diz:

    "Não há tecla que defina o claro e a cor,
    os restos de arco-íris e os relâmpagos da criação"

    Não sei se o tempo me influencia,
    mas a vida parece-me que se vai ausentando de mim, rápido demais. :)

    É sempre um privilégio vir a este espaço
    e sentir que aqui há calor humano e nobres sentimentos.

    Um beijinho e obrigada, Poeta.

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  8. Palavras para quê? Ler o que escreve é a sedução da maravilha. Saio daqui fascinado.
    .
    * Se te amar for pecado ... Então sou um Pecador *
    .
    Cumprimentos poéticos

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  9. um poema magistral:
    que fala da "impossibilidade" da comunicação
    a palavra (eternamente efémera)fica sempre aquém
    "do sentir e do dizer e do ler..."

    como bem diz a nossa amiga Graça Pires
    "não há palavras certas para falar deste teu poema".

    abraço. Poeta.

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  10. Coisas pequenas, mas de enorme valor - preciosas.
    Foi agradável ler o seu poema...
    Fiquei muito contente por saber que voltou a escrever,
    continuação de boas melhoras.
    Abraço, Amigo.
    ~~~~

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  11. a palavra sufocada... a luz que se esvai

    o terminus do poema sintetiza tudo...

    que a luz venha rápido ...

    beijinhos

    :)

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  12. Um pouco mais de luz e eu era poeira sufocada por tão “enovelada” e fenomenal poesia , Agostinho !
    Beijinho !

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  13. O Mário Sá-Carneiro neste poema "Quase" é uma companhia maravilhosa para
    este teu imenso poema, em que a poesia se materializa na luz da
    profundidade das palavras, a trazer as dores-sombras num preenchimento
    intenso do fluxo vida, como eterno aprendizado...
    Somente sei que ler, sentir, ler e sentir a tua poética é um
    momento com muita luz, aqui um poeta com alma!...
    Fico emocionada com a leitura aqui, Agostinho.
    Beijo.

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  14. Na era da comunicação... acho que nunca estivemos tão inábeis para comunicar e socializar...
    Perde-se o momento... em prole do registo do mesmo!...
    Olhamos tudo através dum ecrã... mas perde-se a versão original, dos acontecimentos... e da realidade... que "photoshopamos" para ficarmos com a versão mais bonita...
    Vemos o que não é... mostramos o que devia ser... esquecemo-nos de olhar... apreciar... e sobretudo viver... em prole destes gadgets que nos roubam até a alma, de última criação... e a quem confiamos praticamente tudo da nossa vida...
    Pelo menos foi assim que eu interpretei o seu poema, Agostinho... na era da comunicação... cada vez temos mais, o acesso à verdadeira comunicação... atrofiado e bloqueado!...
    A comunicação, deixou de estar assente em verdades... mas em likes, tendências, e no que se presume como verdade...
    Onde foi que perdemos, a luz... ou a razão?... Quando falamos com sílabas mudas... e deixamos um imogi descrever a nossa emoção... perdendo-se a tal efemeridade do sentir... e do dizer?...
    Um poema intrincado, e profundo... e que nos dá imenso sobre o que pensar...
    Belíssimas as demais escolhas, que complementaram muito bem, o seu trabalho poético!
    Beijinhos!
    Ana

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