quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Há tantos natais

de Alberto Caeiro - excerto do Poema do Menino Jesus

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o Sol
E desceu no primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.




de Jorge de Sena, Natal de 1971

Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm?
Dos que não são cristãos?
Ou de quem traz às costas
as cinzas de milhões?
Natal de paz agora
nesta terra de sangue?
Natal de liberdade
num mundo de oprimidos?
Natal de uma justiça
roubada sempre a todos?
Natal de ser-se igual
em ser-se concebido,
em de um ventre nascer-se,
em por de amor sofrer-se,
em de morte morrer-se,
e de ser-se esquecido?
Natal de caridade,
quando a fome ainda mata?
Natal de qual esperança
num mundo todo bombas?
Natal de honesta fé,
com gente que é traição,
vil ódio, mesquinhez,
e até Natal de amor?
Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm,
ou dos que olhando ao longe
sonham de humana vida
um mundo que não há?
Ou dos que se torturam
e torturados são
na crença de que os homens
devem estender-se a mão?



-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-



Todos os anos, quando o frio se anuncia, os homens olham para o calendário e iniciam a contagem decrescente das semanas, dos dias, até ao dia de Natal. Para que a solidariedade passe de intenção a devoção um frenesim de intensidade variável, mensurável consoante o montante da bolsa de cada um, apodera-se das pessoas. Será possível conceber a celebração de Natal de outro modo? Julgo ser muito difícil contrariar a dinâmica criada na tradição, explorada pelos interesses prosaicos do dinheiro. 

É muito difícil porque a peta do “tempo serve para quê” é impregnada desde muito cedo, quando se é ainda pequeno, para melhor efeito – de pequenino se torce o pepino.  E fica, ficou colada, entranhada no íntimo do ser, em nós, como se fosse cola que não descola. Para manter o pessoal na forma, digo, para manter o pessoal a dormir na forma (?).

Primeira lição recebida: o tempo é dinheiro, usa o tempo para ganhar dinheiro. Neste ponto, o dinheiro são coisas bonitas, gostosas que se trocam por tostões.Segunda lição: há tempo para tudo se for bem aproveitado. Só os preguiçosos não alcançam a felicidade suficiente. 
Depois, vem o rigor instrumental. Relógios e mais relógios. Horários e prazos. Calendários, cronogramas: consequentemente, tendencialmente, à medida que se vai avançando, o tempo decresce para o eu e aumenta desenfreadamente para o outro. 

Durante algum tempo, digamos que até à puberdade, acredita-se em tudo, até no Pai Natal. Já no que diz respeito à falsidade da história do tempo e do dinheiro a descoberta é feita muito mais tarde.  Vive-se a ilusão da festa durante muito tempo. Demasiado.


Quando as coisas correm mal e vem a escassez de tudo, por falta de tempo, de calor, de comida, de roupa, de trabalho, de amor, é que é o pior. Vem ainda uma última ilusão, de um possível milagre, de um euromilhões, de comprar o que não se tem, um sorriso, uma atenção... Mas como comprar quando não se tem dinheiro? Daí ao estágio no banco é um fósforo. Vem então, para pacificação de espíritos escrupulosos, a glória e a redenção da ceia de Natal,   a ficar cada vez mais escassa, cada vez mais fria. E chega um dia em que não apetece.


hajota

4 comentários:

  1. Meu querido amigo

    Que neste Natal a magia da criança que fomos esteja presente nos nossos corações...que não seja apenas uma comemoração de um dia, mas que se prolongue por todo o ano...unindo almas com o carinho de uma palavra...o calor de um abraço...a doçura de um sorriso.

    FELIZ NATAL junto de todos os que amas
    Um beijinho e obrigada pela amizade e carinho enquanto estive ausente.
    Sonhadora

    ResponderEliminar
  2. Que bela sintonia. Adoro o poema de Alberto Caeiro. O de Sena é igualmente bonito e pungente.
    Agora o seu texto: que bem que liga com os poemas escolhidos. A alma alimenta-se desta escrita.
    Tenta-se melhorar o Natal e o Agostinho conseguiu.
    Obrigada por esta partilha.
    Feliz Natal.:))

    ResponderEliminar
  3. *** Dias plácidos e felizes. ***
    ***ººº***ººº Beijinho.ººº***ººº***

    ResponderEliminar
  4. Já depois do Natal fica o registo da minha apreciação deste belo post.
    Beijinhos, Agostinho! :)

    ResponderEliminar