segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Dia de chuva

http://revistacontemporartes.blogspot.pt/

Levava horas perdido
perante a vidraça a ver,
sem sentido,
o caprichoso contorno
da chuva a escorrer.
Comigo o tédio da inação
e, lá fora, o transtorno
do tempo a persistir.

Adivinhava-me na rua
a fazer coisas inadiáveis:
trepar ao mastro dum veleiro,
prevenir a abordagem de piratas
de cima de um pinheiro,
e, com a cabeça na lua,
explorar carreiros de formigas
no aprovisionamento estival. 

Para melhor enxergar
aproximava o rosto
ao vidro embaciado da janela.
A olhar para anteontem,
com o dedo de apontar,
desenhava o sol a brilhar,
na esperança de uma aberta.

E se o sol não vinha,
com os olhos já cansados
de esperar,
dizia sozinho uma reza:
"Nossa Senhora da Conceição
manda sol e chuva não!"
para a chuva parar.


hajota

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Dias da criação


Naquele tempo os deuses
desceram à Terra infecunda 
para fundar harmonia e beleza
na alma angelical da natureza

e não tinham relógio,
nem precisaram ter.
Dispunham da eternidade,
sem princípio nem fim,
para amar de verdade.

Entregaram-se ao amor
pelas coisas mais comuns.
A água, fosse qual fosse,
dos rios ou do mar toda ela era doce.
Por isso foi amada,

como as árvores virgens,
cada uma com a sua flor,
todas frutificaram
graças ao amor.

Naquele tempo a flor era a flor.
Os deuses não sabiam dos olhos
nem da água que deles brota
nos desertos silentes da dor.

hajota




Painel de azulejos, 1992, Instituto Português de Oncologia do Porto, Julio_Resende_Azulejo_by_Henrique_Matos







quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Foi assim no Éden

sirène & poison - marc chagall
Recordo hoje o coral e as conchas,
o vermelho saturado do ocaso  
entre o mar e o céu pintado,
os matizes refulgentes
da evolução cromática do fogo,
da brasa soprada da criação
até à ferida ofuscante da fissão do átomo.


Recordo o coral e as conchas,
evoluindo naquele acaso
tranquilo,  o contorno espreguiçado
em contraluz, nas coleantes
linhas suspensas do pescoço
a saires da água. A ebulição
cresceu em mim: ainda hoje te amo.

hajota



sábado, 13 de setembro de 2014

O desespero do nó


Continua em cena
a farsa dos sapatos resplandecentes
dos pés nús.
Das deambulações constantes
resulta o déficit crónico da Nação:
desgastam a pedra (fria)
na procura de nada.

E o nada que é tanto!
basta ouvir os empíricos na tv,
a sabedoria avençada do costume
carregada de razão.
Estatística, pois,
em queijos e barras gráficos
debitam médias, modas, tendências
diagnósticos precisos
prescrições miraculosas:
a nação fica esclarecida
das boas intenções
para que ninguém diga:
Não!

E,
apesar de tudo,
as folhas caem,
inexplicavelmente,
nas ruas deste país.

Os unhas roídas da fome,
gelados em longos silêncios,
caem na vil dormência
da tristeza crónica,
sem ter como desatar os dias:
como não lhes crescem as unhas,
contrariando o êxtase oficial,
o desespero apura a solução do nó.

old man with his head in his hands - Vicent van Gogh
10set2014

hajota

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Perdeste-te em prelúdios de palha


A rouquidão que te afoga a garganta
pede o mel que solta os timbres doces,
a secura que te paralisa a língua
pede a seiva que escorre das comissuras do desejo,
a névoa que te obnubila o horizonte
pede a luz que faz crescer o ardor,
o marulhar confuso dos sons que te afunda
pede a brancura serena do silêncio,
as asperezas que te povoam a pele
pedem a brisa suave da praia deserta.

A esperança está no iodo de um beijo
que te resgate num toque de veludo
e tu enredada em abstrações
de transparências etéreas
julgando ter as simetrias lidas no céu
ao alcance da mão
e afinal não saem de onde estão.

Perdeste-te em prelúdios de palha
a roubar sonhos em galáxias
inventadas num torvelinho de insónias
à espera que o dia se fizesse no mar,
que a luxúria da luz inundasse
o ondulante horizonte azul
e limpasse a névoa que te tolhe o olhar.

hajota

el beso de los amantes - René Magritte

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

A Ordem dos Advogados não fez like

O Novo Mapa Judiciário é que está a dar, com a Ministra da Justiça orgulhosa da sua obra, mas a Ordem dos Advogados não fez “like”, antes pelo contrário, apresentou uma queixa-crime na Procuradoria-Geral da República contra membros do Governo invocando o  art.º 9.º da Lei 34/87 - Crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos. 

A reforma da Justiça está feita? Confesso que quando vir tudo a funcionar poderei até aplaudir a dita reforma. Para  já prefiro esperar.

Pelo que se tem visto, a implementação de reformas, desburocratizações, simplificações e outras formas de mudar a cor às paredes, carpetes e etc. (muito grande, inclui as negociatas de estudos, fornecimentos, empreitadas e mais etc.), resultam em complicações graves e distribuição de bodo.

Toda a gente percebe a necessidade de reformas, para que o progresso não fique tolhido, mas parece-me haver um mal em Portugal, porventura congénito, que é a "necessidade" inscrita na agenda dos protagonistas da política perpetuarem o seu nome numa estória, julgando ficar na História.

Que Estado é o nosso que, tendo recursos patrimoniais que nem o próprio Governo conhece, coloca centros de saúde em apartamentos residenciais, repartições de finanças e tribunais em vãos de escada, esquadras policiais em ruínas... E até adquire terrenos a particulares para construir e edifícios onde depois derrete €€€ que não tem em obras de adaptação?

Depois deitam foguetes, fazem festa, muito orgulhosos do lustro obtido. Não reparam, ou não querem ver, que continuamos a ser um país de pelintras, com uma elevada percentagem de carenciados, com menos cores salazarentas, é certo, já passaram quatro décadas, mas continuamos com uma saúde oral péssima, um bom indicador para se aquilatar do estado da nação. Basta sair à rua e conferir. Será esta uma das razões para que os portugueses sejam tão sisudos? Era suposto que, com o “progresso” proclamado, já não o fôssemos.

Para acabar, para aliviar o nó, pergunto por que razão a OA não apresentou queixas de idêntico teor em ocasiões anteriores, tantas têm sido as tropelias do poder? 


terça-feira, 2 de setembro de 2014

É nua que a gente se encontra

mulher nua numa poltrona vermelha - picasso
É nua que a gente se encontra!
deitar fora deitar fora deitar fora
até encontrar o eu que está fundo
até descobrir a verdade do mundo

A gente a despenhar-se no vácuo
acumulado de tempos e pessoas
a encontrar-se nas certezas e manias
na indelével erosão dos dias

Com anódinas camadas de tinta
sufoca  a frágil cor original
é deitar fora deitar fora deitar fora
até chegar ao miolo onde o eu mora

até à conjugação do verbo ser
no presente da própria pessoa
é deitar fora deitar fora o indigente
ontem competentemente displicente

Diluindo a dor da reflexa conjugação
do fazer na afirmação do presente
é que a gente há de articular o futuro mais
sem consoantes a ferir a pureza das vogais

hajota