segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Patrimónios de pó



Primeiro abre-se a porta
por dentro sobre a tela imatura onde previamente
se escreveram palavras antigas: o cão, o jardim impresente,
a mãe para sempre morta.

Manuel António Pina, Como se desenha uma casa (1.ª estrofe)






O poema agrega o cinzento cimento,
para coerência da edificação,
e desagrega o fissurado da unidade,
lobo a lobo,
em alçados de ortogonal construção,
cartografados em pontos cardeais:
frontal parietal temporal occipital.

Nas quatro fundacionais paredes
o passado ruína rumina presente,
inspira expira gemidos ruídos
orgânicos de motibilidade biológica
previamente inscrita, 
escrita na torrente do límbico 
exercício concreto do abstracto.

Ouro imaterial nasce na memória
preservada pela dura-mater,
- patine amadurada do tempo -
no miolo da urbe, no miolo da gente.
E no meio a mesa, cadeiras em volta, 
onde o branco vazio da folha espera
o jorrar inapagável da tinta luminescente. 

Molécula a molécula a construção
do fraseado destinado do destino respira. 
O bafo húmido corre poro a poro o fílme:
a matéria que renasce enquanto morre  
na pedra no tijolo no grão de areia,
é património vivo da gente, guardado em pó. 
No miolo está pura a eterna poesia.


hajota

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Da ausência do Pinhal


(...) A cabeça ficara marcada, invisível, mas quando me deitava de costas, na escuridão, sentia uma queimadura na têmpora, a crosta fervendo por baixo, da nuca à testa. Interpretava-a como uma cicatriz que me acompanharia até à morte, o emblema de uma guerra assombrosa de que já esquecera os pormenores e o sentido. (...)


Herberto Hélder, Servidões






http://rr.sapo.pt/noticia/95895/


As dunas a esmorecer de pele nua 
perderam o viço a urze e o feto,
os grãos de areia crescem em deserto.

Rugoso o rosto sentinela não sua
resina e o filtro verde - o nosso amparo -
jaz mirrado em cinza, reparo.

A nortada desmedida tomará posse,
como bárbaro huno o espaço,
sem piedade.

No Inverno virá a capital pena,
incomutável na memória, a cena
dos homens-espectros sem tempo, a morrer,
com saudades dum Pinhal por nascer.
Sem piedade.


hajota