terça-feira, 22 de março de 2016

Podia ter sido ontem, foi hoje


De 25/06/1959. Podia ter sido ontem, foi hoje. Jorge de Sena sempre no futuro do presente.

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Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya 
 

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadela de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
multas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.


jorge de sena



quarta-feira, 16 de março de 2016

Anunciação


Com vagar, de-va-gar, leio.
Leio até que o som se levante das sílabas
nos poros da minha pele,
em emanações finíssimas,vibrante.
Repito, de "uma claridade cega", 
isto:

(hajota)




Sorvo, dentro da manhã,
a brevidade de um silêncio sobrenatural.
No ritual desse instante
escorre-me a sede pela cara
até à fonte mais remota,
onde a água tem o sabor
do leite materno
em prematuras bocas.

Graça Pires, Uma claridade que cega, Poética edições




almada negreiros - maternidade



Ainda não chegara a hora
de despontares no horizonte
em alvorada, de seres rio
a correr entre as margens
iluminadas da primeira manhã.

Ainda o futuro não se fizera
em presente no cântico inicial,
quando o fruto emerge à luz
num brado firmado que percorre
todo o vale resplandecente, eu vi.

Eu vi-te estrela brilhando nos olhos
dum céu imenso, incandescente
do júbilo da tua mãe na anunciação, 
quando a planície lisa ainda,
sem seixo algum a arredondar.


hajota

sábado, 5 de março de 2016

Na mão de Laura


...
(Eu ando sozinha,
ao longo da noite.
Mas a estrela é minha.)

Cecília Meireles, do poema Canção da tarde no campo


 Tela de David Hockney



A minha mão na tua 
alegria 
canina pela rua
freneticamente a puxar e eu via-
-te esfregar o focinho 
na aventura
a descoberta dum ninho
duma lura
das coisas que há
nos campos 
- cores cheiros bichos

E as perguntas verdes 
tantas e outras tantas 
a bordarem
a tua boca de mil flores?
A surpresa!

das respostas de sombra e sol
no húmus na pedra
consoante
o rodar do girassol
- os teus cabelos -
na areia na água adiante

e os teus olhos
que correm mais 
que as pernas minhas
a alumiar os caminhos
para onde vais
amanhã
a tua mão na minha

hajota