sábado, 29 de outubro de 2016

Andei perdido



Ao toque adormecido da morfina
Perco-me em transparências latejantes
E numa noite cheia de brilhantes
Ergue-se a lua como a minha Sina

Álvaro de Campos, quadra de Opiário






Salvador Dali, a desintegração da persistência da memória







Andei perdido no veneno das bagas
a suar o frio do loureiro traiçoeiro

O horizonte tão largo de anjo 
- olhos de desejo -
reduzido apertado
Apartado 
sem asas eu nu à mercê do destino
Fui ao centro de mim como nunca fiz

Peixe de olhos fixos sem mar 
sem chorar
vi-me estiolado na pedra fria  
Tiraram-me a escama que refulge a noite
mas não foi fatal

Puseram a mão no meu coração
mas a alma desalmada não viram

Sobrevieram rosários de mistérios
dolorosos e delírios gozosos 
Bastavam os olhos da noite e do dia
fechados 
e era a cor de salmão que se abria
em azuis 
Páginas e páginas impressas
letra redonda escorrendo as águas
passadas 
do rio sem tempo marcado

Inexplicavelmente depois pintura
a povoar paredes de galeria
Eu espantado:
El Greco Pieter Brugel o velho renascentista
Rubens de feminilidades barrocas   
e Goyas de romântica estética
Onde é que eu vi isto?

Em terno sustento voltei à tona
uvas abrunhos  maçãs "forever young"
Desalmado mas com coração!


hajota


segunda-feira, 17 de outubro de 2016



Andei arredado destas lides por motivo de saúde. 
Visitei durante este período conturbado alguns dos amigos, mas sem ânimo. Sem rumo nem consistência. Não houve da minha parte intenção de discriminar ninguém. Muito grato a todos.

Para desanuviar trago aqui um pequeno texto (prosa) que é parte de estórias da adolescência.




Imagem Pintrest




Regalavam-se de costados ao sol, como se fossem príncipes nas praias da Côte d’Azur, a gozar em plenitude os favores que Deus lhes havia concedido. As horas de torreira eram aproveitadas para aquecerem o sangue e suprirem carências de vitamina D que tanta falta faz para suportar com otimismo e elegância o inverno,  do ano e o derradeiro, no tempo futuro: o calorzinho mantem o metabolismo em perfeito funcionamento de modo que artrites, artroses, osteoporose e outras maleitas de ossos nem vê-las. E a corzinha da pele? Um encanto, quando é hora de se mostrar a timidez é coisa que se evapora.
Eram as cores resplandecentes que atraiam a malta que de maneira nenhuma podia desperdiçar a opulência nas horas de canícula, de mormente depois de almoço. Azuis, vermelhos, amarelos e verdes um apelo irrecusável.
Quem vai para o mar aparelha-se em terra, reza o adágio popular, ninguém ia de mãos a abanar, sem que fosse equipado a preceito. A aproximação ao local de observação era feita com as maiores cautelas para evitar que fosse desfeita a espontaneidade que aqueles seres viviam. Se eles pressentissem algo em redor, o bulir de uma folha pisada, o pigarro da emoção ou um passo mais pesado era a debandada geral, acabava-se o espetáculo imediatamente.
Em pés de lã a malta avançava numa cadência de metrómano, em câmara lenta, com uma sincronização de movimentos precisa e decidida, como se cumprisse os tempos duma coreografia: o lago dos cisnes em pontas. Quando a distância já reduzida permitia confiança, a certeza de não se falhar o objetivo, à uma, em segundo ato, todos empunhavam a arma de que dispunham, fosse uma simples pedra, uma fisga ou mesmo uma pressão de ar. Em ordem, no terceiro ato,  era o apontar e o clímax, a adrenalina no máximo, e por fim a resolução no disparo simultâneo. Uma correria infernal, dos caçadores e das presas, exceto dos caçados que jaziam por terra. É claro que as vítimas eram depois arremessadas para longe daquele lugar. Não era sítio próprio para aquela casta.

O muro do cemitério era o local supremo para a caça de sardões.

hajota