domingo, 30 de agosto de 2015

Caligrafias


Ainda há quem escreva 
faça letras entre linhas?
Em cadernos de duas linhas
se fez a mão em jogos 
medos e adivinhas

 | http://cargocollective.com/raquelaparicio/




















Há-as com a inclinação dos certinhos
de palavras aparadas como sebes
que seguem o traçado da linha
do chão sem acidentes
induzidos na dormência
pela onda do vento que atravessa a planura
É a tendência dos submissos
que mesmo na ocorrência de ondulação
dorsal de todo inesperada
se mantêm na uniformidade
imperturbável da sesta ordenada


Há-as também a invocar artes circenses
dos que atiram facas ao ar
com éles tês dês e até com mudos hagás
Ou as dos que se denunciam com tendências
mortais para assassínios e suicídios fatais:
cravam na linha como se fossem punhais
os pês os bês os dês os guês os jotas os quês
- por gravidade são mais
E há caligrafias marcadas pela contradição
dos que aparecem em extremada posição
de sintomatologia bipolar: os éfes
Oscilam num ai da euforia à depressão 
com humores de difícil compreensão
São estas as que se prestam à vaidade
aos rococós e excessos de exibição


Há ainda a escrita suprema 
a que flutua deitada no espaço 
entre os limites do azul das linhas 
onde correm brisas a despentear fumos e
incensos rítmicos à medida dos momentos
sinais e códigos cuneiformes - os inscritos
há milhares de anos pelos sumérios
nas tabelas sagradas da memória
É nesta que a liturgia imperceptível ao olhar
comum se oferece à decifração
dos iniciados da abstracção material
dos que tentam por tentativas a invenção 
 mergulhos na profundidade dos abismos
e na elevação galáctica nas divinas imperfeições
na fecundação das metáforas uterinas 
que é a carne da poesia



hajota



domingo, 16 de agosto de 2015

E ainda hoje metáforas pintadas às cores


Man and woman in café, Pablo Picasso, Wikiart

Atrás dum copo de bagaço
de roupa escassa e esgarça
gelada gente ficava esquecida
no café refúgio da esquina
adiando o esquálido conforto das frias casas
mais frias do que as pedras
da calçada negra branca
Isto naquele tempo pardo cinzento


E ainda hoje
apesar das metáforas pintadas às cores
Como a mulher de blusa azul celeste
de eterna bandolete a cingir-lhe
na iminência dum número de palhaços
a fronte pintada pronta
na mesa do café: chávena pires colher
num monólogo mudo todo o dia

Que barco de mulher esconde
encalhada na ilusão das triviais revistas   
de trás para a frente da frente para trás
a folhear a subtração irremediável do tempo
segundo a segundo tic-tac tic-tac
num relógio sem ponteiros

Hoje como ontem hesitações de toutinegra
no galho nervosa em flexões de pernas
indecisa no regresso ao lugar de pernoita
por saber de cor a côr do frio
o som do quebrar de cristais
de cálcio das artroses futuras

Ainda hoje apesar das metáforas
com que nos pintam a vida



hajota

domingo, 2 de agosto de 2015

Cicatriz



aflorei na minha última publicação neste 
local a palavra - Sortilégio - que se reveste 
de um hímen, de uma delicadeza, 
que requer sensibilidade de alma para ser tocada. 
Orvalhada, a minha, na frescura da manhã,
sempre às Terças, aroma 
que se desprende do mar, 
 fez-me sentir o sortilégio de "olhares", 
assim,da maré que hoje veio, subiu, 
a brisa de  "Detalhe"
Atrevi-me na tentativa dum poema-mais-que 
comum, efémero, imperfeito.







A cicatriz: o detalhe do talhe
o aspecto feição de impossível afeição
Quando menos…

há sempre uma dúvida
há sempre mais um nó
no fio: nós uma sucessão de nós

E apesar de tudo quase
uma afeição que medra
nos momentos que palpamos o relevo do medo

ao desfiarmos o rosário nos dedos nodosos
exorcizamos a impotência
na revelação quando muito


hajota