segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Jerónimos, 2021-09-12



Aconteceu
Vimos a emoção partir, já não chorava
Guardamo-la nós agora até à eternidade
E que ninguém negue esse sortilégio!

Ninguém o pode recusar nem negar, 
a não ser a boca dos desprovidos de coração, 
bombas mecânicas, apenas, de lançar 
na corrente dos dias a sombra, 
a ignomínia e a raiva da maldição 
da sua inexistência.
(Mas esses não contam nos grandes momentos)

Aconteceu
Ninguém pode negar
a formidável cintilação dos ésses coincidentes
na cúpula magnífica dos Jerónimos,
a conjugação dos dois astros distintos:: 
dois Jorge, Sena e Sampaio  

hajota




 


Uma pequenina luz - poema de Jorge de Sena

Uma pequenina luz bruxuleante
Não na distância brilhando no extremo da estrada
Aqui no meio de nós e a multidão em volta
Une toute petite lumière
Just a little light
Una picolla, em todas as línguas do mundo
Uma pequena luz bruxuleante
Brilhando incerta mas brilhando aqui no meio de nós
Entre o bafo quente da multidão
A ventania dos cerros e a brisa dos mares
E o sopro azedo dos que a não vêem
Só a adivinham e raivosamente assopram
Uma pequena luz, que vacila exacta
Que bruxuleia firme, que não ilumina, apenas brilha
Chamaram-lhe voz ouviram-na, e é muda
Muda como a exactidão, como a firmeza, como a justiça
Brilhando indeflectível
Silenciosa não crepita
Não consome não custa dinheiro
Não é ela que custa dinheiro
Não aquece também os que de frio se juntam
Não ilumina também os rostos que se curvam
Apenas brilha, bruxuleia ondeia
Indefectível, próxima dourada
Tudo é incerto, ou falso, ou violento: Brilha
Tudo é terror, vaidade, orgulho, teimosia: Brilha
Tudo é pensamento, realidade, sensação, saber: Brilha
Desde sempre, ou desde nunca, para sempre ou não: Brilha
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
Como a exactidão como a firmeza, como a justiça
Apenas como elas
Mas brilha
Não na distância. Aqui
No meio de nós
Brilha

(dito, na circunstância das cerimónias fúnebres de Jorge Sampaio, 
por Maria do Céu Guerra)

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quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Doce de Agosto

 

A gente pensa devagar, aliás, 

nem há vagar com tanta solicitação, 

apelo, corpo em pêlo, praia, verão, turismo

Turismo: globalização, habituação


Calote: incomoda-pé,

dívida pública, polar...

Que interessa isso?

Desde que haja gelo no copo...

"vamos beber o drink de fim de tarde"!


Depois, depois, muito depois, 

o depois-nunca... o clima, 

o vórtice do funil a afunilar a vida

O que nos vai valer é o que irá haver:

colónias de férias em marte 

pagas a bitcoins

«««





uma boca só

dá dó

revela fome

fome essencial

doutra boca

como pão para a boca

vital!

«««

 

hajota (palavras e foto) 


-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o- 

domingo, 25 de abril de 2021

 



 Yona Friedman (foto minha)



a Revolução foi ontem

hoje é que é o dia de pôr o cravo

na ponta do mastro para que navegue

na ponta da vela para que vele (por nós)

na ponta da espingarda para que o medo não volte

na ponta da língua para que a esperança e a utopia não esmoreçam

na ponta do propósito do que falta cumprir

e ainda há tempo no nosso (a não esquecer) 


hajota

domingo, 21 de março de 2021

 

Havemos de ir ao futuro
e, quando lá chegarmos
hão-de estar todos
juntos numa festa..
[...]

Filipa Leal



Van Gogh, amendoeira em flor, fonte -web


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Tudo como dantes?
Estava eu aqui a picar
grãos de milho tictic tictictic tic…
e a pensar de papo vazio
onde andará o tempo como dantes 
Havia melão e melancia e arroz doce, e…
E sorrisos e alvoroço e tropel
no soalho e corridas à volta da mesa e
no quintal da amendoeira a depenar-se
do branco em pétalas… da gente miúda
E a graúda esquecida
em copas e paus e ouros e espadas
do tempo 
biscando tanta copulativa 
(é certo)
mas era o modo de se ligarem 
pessoas e coisas acrescentando
tempo ao tempo
Em ambiente familiar dispensavam-se 
vírgulas formais

E agora tictic tictictic tic


hajota 


sábado, 20 de fevereiro de 2021

Aí, há homens que vivem, pálidos, sem cor,

e morrem sem saber por que sofreram

E nenhum deles vê o pobre trejeito

que ao fim de noites sem nome veio substituir

o sorriso feliz de um povo meigo


Rainer Maria Rilke



oooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooo


fountain, marcel duchamp, web


oooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooo


No bidé metrómano de torneira, o pingo

pinga pinga pinga o ritmo da larga partitura

A princípio audível na cabeça o som ainda,

pingue noturno minimalista lento chato,

fez-se surdo, nódoa oxidada na osteoporótica por-

celana, brancura na ideia que alastra ao corpo

à casa a tudo: a luz ausentou-se da gente enfim.


A lei da seca estabelecera o enterramento

das bibliotecas, o encerramento das livrarias,

portas e postigos lacrados, e a subversão

desceu à rua porta a porta em corpo invisível.

 

A necessidade de livros estalou por toda a parte

num tempo de reclusão tão farto de liberdade

mas da abundância de tempo, livres para fazer  

aquilo para que não havia tempo, a erosão dum vento

demente fez à sorrelfa um vazio na mente.


Sem margens marcos paredes parapeitos

onde hão-de descansar os cotovelos que suportam

a cúpula se a fonte corre ao contrário?


hajota