Atropelamento e fuga
Era preciso mais do que silêncio,
era preciso pelo menos uma grande gritaria,
uma crise de nervos, um incêndio,
portas a bater, correrias.
Mas ficaste calada,
apetecia-te chorar mas antes tinhas que arranjar o cabelo,
perguntaste-me as horas, eram 3 da tarde,
já não me lembro de que dia, talvez de um dia
em que era eu quem morria,
um dia que começara mal, tinha deixado
as chaves na fechadura do lado de dentro da porta,
e agora ali estavas tu, morta (morta como se
estivesses morta), olhando-me em silêncio estendida no asfalto,
e ninguém perguntava nada e ninguém falava alto!
Manuel António Pina, poesia, saudade da prosa - uma antologia pessoal, Assírio & Alvim
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Foto: Gilberto Jorge |
Que é feito do som que escorria
por entre as corolas
das madrugadas de dezembro?
Sei de saber certo, normativo,
que me veio como boletim
informativo das sete
naquela manhã cálida e
esplendorosa de julho
sol nascente cor de sangue
escrito numa folha de papel:
o vento já não lhe mora no peito
pela noite um lago negro feito
O cisne encarquilhou-se nas penas
e nem as melíficas madeiras vibraram
um som de sinal nas
flautas do pinhal
Adormeceu irremediavelmente
na mais negra noite vestido
quando ainda era tempo de trabalhar
Ele que de olhos cansados das vigílias
dos dias grandes permanecia
diligente na consecução do cristal
Com linhas atava indecisões
nos momentos derradeiros
sem margem para cobardia
A vida tem direitos e avessos
e entre uma face e a outra dá-se-
-lhes um ponto que as abrace - dizia
O sangue vermelho coalhou e
as carnais conformações
- pele nervos músculos –
são pó estéril em torvelinho
e os ossos inertes permanecem
em defunção no frio do silêncio
Já não adianta esperar
a firmeza quente das mãos
íntegras o pão e as carícias
e nem as melíficas madeiras
das flautas vibram no pinhal
o timbre o ritmo qualquer sinal
hajota