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Chagall, Adam and Eve Expelled from Paradise |
As mãos a princípio cal
imaculada sem pecado
de pureza virginal vão
deixando o branco original
nas farripas do mar à medida
que as linhas no azul
trazem o horizonte para a
borda do barco. O sal
a queimar cândidas esperanças
por um vintém
e o fio a rasgar a carne um rio de peixe vermelho
a desaguar no mar o resto que
resta da inocência
perdida em séculos de
território de indolência
Superstição. Há séculos que
as aras sacrificiais
se mantêm pela ignorância das
praxis o vermelho
esquecido - o pacto feito com a
natureza. Perdeu-se
a fé no atrevimento de
caminhar nas águas. Sozinho
tornou-se num risco a
travessia do rio. O medo
mantém-na à margem. Houvesse
barqueiro
que levasse a migalha ao
outro lado de regresso
à inocência branca quando
ainda cor nenhuma
O sopro dos ventos alíseos carregou
anos a fio
o finíssimo pó que tempera o
ocre dos desertos
desintegrado do trópico de
capricórnio da magia
Já não sente o sangue que
marca o ato de nascer
e androceus de manchas
queimando as dobras
lençóis enrolados na margem
do queixo
espadanando transparências no
lobo da ínsula
são procura dum istmo que lhe devolva
a península
hajota
A Esperança
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Chagall, blue angel |
E depois talvez venha
O anjo da visita e do poema
E traga o lume e a lenha
Do incêndio pedido.
Talvez venha,
De ritmos vestido.
Talvez... E, como outrora,
Ponha sobre a cabeça
Do poeta de agora
Os versos que ele mereça.
Em forma de grinalda,
Inocente e florida,
Talvez o faça ungido
Dum grito a mais na vida
Inútil e dorido...
Miguel Torga, Poesia completa, vol I, Ed. D. Quixote