terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Morte e ressurreição

Henri-Matisse, The girl with green eyes
http://pt.wahooart.com/






Não acendas fogueiras à janela
- pode o escuro enamorar-se
das tuas verdes íris.

José Luís Tavares, Lisbon Blues,
1.ª estrofe de Alfama (pag 32) 
 Abysmo









Sente-se uma picada  
como uma urtiga na noite
dentro está a lâmina

O aço rubro brilhante
cravado no ventre e
o sangue fermente incan_
descente das profundezas  
sobe num prenúncio de agonia

A morte chega enovelada
na insónia a arder clara- 
mente branca - anunciada no fogo
do fim do mundo

Noite após noite as pérolas
brotam em translações
por entre esgares e sons
e antes da madrugada
sobrevém a ressurreição


hajota

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Corrupções

Luc de Clapiers, imagem da Wiki



Lembrei-me, ao ler hoje o "Escrito na Pedra", na última página do Público, de  ir buscar à gaveta dos rabiscos este Corrupções.  A frase  "Antes de  atacar um abuso, deve ver-se se é possível arruinar-lhe os alicerces" é do escritor francês Luc de Clapiers, Marquês de Vauvenargues (1715 - 1747). 









Faz-se ao som de ladainhas
juros capital spread euribor
e outros latins financeiros
em nome do pai o supremo:
o som do dinheiro engrossa
fungos e empreiteiros.

Engrossam unhas cunhas
facilitações comissões
distribuídas pela pirâmide
multiplicam-se passos 
e à força de buldozer os espaços
Onde havia revelo relevante
a chatice da cidade dormitório.

Alastram fantasmas e miasmas
a construção da ruína nasce
da horizontalidade da bolha
da ditadura redutora do relevo
(Retirem o peito à Miquelina
e vejam como o que era lindo fica chato!)

hajota


Brandoa - Amadora, http://www.skyscrapercity.com/



quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Ruínas

Chagall, Adam and Eve Expelled from Paradise
  
As mãos a princípio cal imaculada sem pecado
de pureza virginal vão deixando o branco original
nas farripas do mar à medida que as linhas no azul
trazem o horizonte para a borda do barco. O sal

a queimar cândidas esperanças por um vintém
e o  fio a rasgar a carne um rio de peixe vermelho
a desaguar no mar o resto que resta da inocência
perdida em séculos de território de indolência

Superstição. Há séculos que as aras sacrificiais
se mantêm pela ignorância das praxis o vermelho
esquecido - o pacto feito com a natureza. Perdeu-se
a fé no atrevimento de caminhar nas águas. Sozinho

tornou-se num risco a travessia do rio. O medo
mantém-na à margem. Houvesse barqueiro
que levasse a migalha ao outro lado de regresso
à inocência branca quando ainda cor nenhuma

O sopro dos ventos alíseos carregou anos a fio
o finíssimo pó que tempera o ocre dos desertos
desintegrado do trópico de capricórnio da magia
Já não sente o sangue que marca o ato de nascer

e androceus de manchas queimando as dobras
lençóis enrolados na margem do queixo
espadanando transparências no lobo da ínsula
são procura dum istmo que lhe devolva a península


hajota



   A Esperança        


Chagall, blue angel 

E depois talvez venha
O anjo da visita e do poema
E traga o lume e a lenha
Do incêndio pedido.
Talvez venha,
De ritmos vestido.

Talvez... E, como outrora,
Ponha sobre a cabeça
Do poeta de agora
Os versos que ele mereça.

Em forma de grinalda,
Inocente e florida,
Talvez o faça ungido
Dum grito a mais na vida
Inútil e dorido...

Miguel Torga, Poesia completa, vol I, Ed. D. Quixote