quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Ruínas

Chagall, Adam and Eve Expelled from Paradise
  
As mãos a princípio cal imaculada sem pecado
de pureza virginal vão deixando o branco original
nas farripas do mar à medida que as linhas no azul
trazem o horizonte para a borda do barco. O sal

a queimar cândidas esperanças por um vintém
e o  fio a rasgar a carne um rio de peixe vermelho
a desaguar no mar o resto que resta da inocência
perdida em séculos de território de indolência

Superstição. Há séculos que as aras sacrificiais
se mantêm pela ignorância das praxis o vermelho
esquecido - o pacto feito com a natureza. Perdeu-se
a fé no atrevimento de caminhar nas águas. Sozinho

tornou-se num risco a travessia do rio. O medo
mantém-na à margem. Houvesse barqueiro
que levasse a migalha ao outro lado de regresso
à inocência branca quando ainda cor nenhuma

O sopro dos ventos alíseos carregou anos a fio
o finíssimo pó que tempera o ocre dos desertos
desintegrado do trópico de capricórnio da magia
Já não sente o sangue que marca o ato de nascer

e androceus de manchas queimando as dobras
lençóis enrolados na margem do queixo
espadanando transparências no lobo da ínsula
são procura dum istmo que lhe devolva a península


hajota



   A Esperança        


Chagall, blue angel 

E depois talvez venha
O anjo da visita e do poema
E traga o lume e a lenha
Do incêndio pedido.
Talvez venha,
De ritmos vestido.

Talvez... E, como outrora,
Ponha sobre a cabeça
Do poeta de agora
Os versos que ele mereça.

Em forma de grinalda,
Inocente e florida,
Talvez o faça ungido
Dum grito a mais na vida
Inútil e dorido...

Miguel Torga, Poesia completa, vol I, Ed. D. Quixote

23 comentários:

  1. Talvez seja possível... Ou talvez não.... Resta a esperança de que seja...
    Adorei as telas escolhidas e o poema de Miguel Torga...
    Obrigada pela visita
    Beijos e abraços
    Marta

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  2. Este seu poema não é um grito "inútil e dorido", é um canto à natureza, mas uma análise quebraria a magia. Um poema é uma oração com poder na melodia das palavras que nos transportam para uma outra dimensão sobrenatural de paraísos possíveis (perdidos ou jamais encontrados) que confortam a alma. Foi o que senti com a leitura do poema.
    Gostei da associação ao poema de Torga, a poesia é a esperança a repor a ordem no caos.
    Chagall e o anjo, azul (claro!), deu o toque final.
    Parabéns!

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  3. Agostinho,
    O seu poema é lindo e conjugá-lo com Chagall é a união perfeita. Aliás parece que nasceram ambos um para o outro. O diálogo com Torga foi o êxtase final. Muito bem urdida esta postagem. Parabéns.
    Beijinho e bom dia de Reis.:))

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  4. A perda da inocência?

    Muito bem escrito. Mas tem de ser lido por muito mais de uma vez. Muito bem escrito... (Do quadro, nem é preciso falar... um espanto de cor e de luz!) Que bom gosto!

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  5. Talvez
    é a palavra proibida
    que só admito
    na voz de um poeta
    quando esta se inquieta

    É que a esperança, meu amigo
    é, para mim (raro em versos)
    é uma certeza

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  6. Este poema é um bálsamo para quem sempre esteve numa península. Ainda que já perdida, ela se mantém dentro de mim. Pelo postigo, sempre a vislumbro.
    Um belo poema. Ainda mais convencido de que as palavras manterão o vínculo que sempre teve com você.
    Abr.,

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  7. A tua bela poética é a poética do surpreendente, como aprecio
    aqueles que alcançam este patamar de luminosidade expressiva.
    E sempre bem acompanhado: Chagall e Torga!...
    Fico maravilhada quando voo aqui, é aquele voo com a certeza
    do encontro do belo com o ineditismo!
    Bjs.

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  8. Perante esta maravilha, que se poupem as palavras. Permita-me apenas, caro Agostinho, que lhe dê os parabéns pela obra forjada.

    Um abraço

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  9. As mãos seguram a inocência inicial: "a inocência branca quando ainda cor nenhuma".Desintegrada a magia fica uma ilha à espera que o "istmo lhe devolva a península" enquanto o olhar se acende de fragilidade. "E depois talvez venha o anjo da visita e do poema"...
    Que maravilha, meu amigo Agostinho, este seu poema! O diálogo com Torga e com Chagall tem uma cumplicidade maravilhosa.
    Um beijo.

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  10. Sublime, como sempre, Agostinho.
    Aquele abraço, bfds

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  11. A simbiose perfeita, entre quem pintou o poema... e quem escreveu o quadro...
    Talento ao mais alto nível... em todas as vertentes, por aqui!
    E a conjugação de Torga com Chagall... nada mais improvável... e nada mais acertado...
    Parabéns, por esta verdadeira obra prima em toda a linha, que é este post!
    Da inocência, à perda da fé, em caminhar-se sózinho... vai toda uma vida... brilhantemente exposta em palavras...
    Abraço! Bom fim de semana!
    Ana

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  12. quando ainda cor nenhuma


    era a esperança do princípio do mundo


    um abraço, Agostinho

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  13. Haja esperança no renascimento e na redenção!

    Beijinhos, Agostinho :)

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  14. Repito

    sempre um prazer viajar pelos teus apeadeiros
    Abraço

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  15. eloquente poema! catártico, pressente-se!...
    a dor sublima-se em poesia...

    forte abraço

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  16. GRANDE MOMENTO! TALVEZ O MAIOR, ATÉ AGORA, NESTE TEU MUNDO... ESTE É UM NOTÁVEL POEMA, AGOSTINHO! NEM CHAGAL NEM TORGA SE SENTIRÃO INCOMODADOS COM A PARTILHA; PELO CONTRÁRIO, HONRADOS! SE HUMILDES...

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  17. Nos custa muito perder a inocência...
    Um privilégio te ler, Agostinho.
    Saudades daqui também.

    Beijinho, meu querido.

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  18. Superstição, veneno que corrói a lucidez!

    Gosto de Chagall

    Agradeço as visitas e convido-o a voltar sempre

    Feliz semana

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  19. Agradeço e retribuo o carinho das palavras deixadas no meu "Ortografia".
    Um beijo, meu amigo Agostinho.

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  20. O preço do conhecimento! Lindo e tão profundamente simbólico que se oferece a leitura de todos! Abraços!

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  21. No encontro vazio do que não mais tinha....

    abç

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