quinta-feira, 25 de junho de 2015

Como se chega ao poema

vem virá verão
leve, levezinha, cirrus 
como no Verão se sente
o ar a subir e se pressente
cumulonimbus lá mais à frente


Boas férias para quem as tem!



foto de Gilberto Jorge


Por falta de gramática
e já agora de geometria
- fuja-se da simetria - 
esboroa-se gelatina-se um poema
Um sério problema
uma pena (!)

Havendo-a
de faisão e com tinta
uma folha de papel
já é um bom começo

Pingam-se então gotas 
de preto ou de céu
à discrição

Usa-se depois o adereço 
que a pobre alma tem
o que mais convém
o que a propósito à mão vem
- calor dor ardor
paixão desilusão saturação 
sussuros risos gritos ais (...) 
e a matéria de que se moldam
as palavras - consoantes e vogais
e vírgulas e outros sinais

O ponto final põe-se no fim
no epílogo
Mais não digo

hajota



segunda-feira, 22 de junho de 2015

€€€ Jogos de crianças €€€

Era uma vez! Normalmente, é assim que começam as fantasiosas histórias infantis. Esta não.

Havia no meu bairro, quando eu era criança, um menino rico que tinha uma bola de catchu. Apesar de rico e de ter bola sentia-se triste por não ter com quem jogar. Então, certo dia, resolveu descer ao terreiro onde a garotada se reunia e brincava aos jogos mais inverosímeis,  plenos de improvisação e imaginação, abundantes naqueles que têm de inventar a vida a cada dia: naquelas cabecitas de cabelo à escovinha fervilhavam mil e uma ideias, como no interior dum vulcão, prontas a explodir.

O menino rico desceu à rua e foi logo rodeado por uma caterva de garotos de pés nus. Passados os momentos iniciais, de surpresa pelo inusitado encontro, o conhecimento mútuo fez-se, naturalmente, com manifestações de júbilo e amizade, risadas, palmadas nas costas e o indisfarçável desejo de afagar aquela bela bola. É que, habitualmente, a malta jogava com bolas de trapos, feitas a partir de meias de senhora, habilidosamente cheias e cozidas com fio norte para lhes dar consistência e reforçar a sua forma esférica. Jogar uma partidinha de rua com aquela bela bola de catchu era o supremo deleite, um luxo.

Propôs o menino rico que se formassem equipas, se jogasse, mas, de imediato, todos olharam para as botas que ele trazia calçadas e, à uma, proclamaram que tratando-se de um jogo, as condições deveriam ser iguais para todos: “se quiseres jogar connosco, tens de descalçar-te”.  Apesar de inicialmente receoso, o menino rico concordou e arrumou as botas na berma. Jogaram toda a tarde até luz que fusco. Felizes!

Entretanto, passaram-se alguns anos e toda aquela catraiada cresceu, uns mais do que outros, é certo. Mas, “democraticamente”, em função das "possibilidades de cada um", todos passaram a usar sapatos. E continuaram a jogar a bola em sofisticados locais, sempre escolhidos pelo menino rico, não nos terreiros improvisados da infância. Apesar da democracia e da solidariedade instituídas, a sorte de cada um adivinha-se facilmente pelos sapatos: basta mirá-los.

Já me esquecia de revelar um pequeno pormenor técnico no jogo actual: agora, o menino rico recusa-se a descalçar as suas sofisticadas chuteiras alegando estarem todos calçados. O problema é que há muitos a jogar de alpergatas.


Logo, ao fim da tarde, vai haver jogo.


Cronos deora os filhos, tela de Goya

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Impressões sentidas no café

http://www.angonoticias.com/


De pé posto monangambé os carreiros
de poeira vermelha tingem contas cereja
as vergônteas na sombra vergadas
para que a beleza sublime do café se veja
como dange nas caudalosas picadas
a desaguar o perfume negro nos terreiros





hajota
 

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Proposições (in)viáveis

"Aproxima-te, não regresses à treva, 
os pêssegos já estão maduros, 
podemos apanhar uma abada e
escondermo-nos no celeiro 
a comê-los, 
ou ao fundo do pátio 
sobre a palha." 

- Eugénio de Andrade, Vertentes do Olhar, Melusina
- 2.ª ed Nov1987, pag 63 - Editora Limiar



Edvard Munch_kiss by the window

Como hão-de os poetas
deambular nas veredas da noite
se cerrados em altos muros?
Como hão-de fornecer-se de folhas
para a escrita eterna
se nem uma árvore de jeito têm?

O disparate dos ciprestes! 
guardiões esquálidos perfilados
em apneia permanente e subtil imobilidade
a compasso plantados  
numa intimidade que conspurca
a alvura dos muros caiados

De esplendorosas folhas
plátanos é que ficavam bem
Sem penugem na primavera
não vá algum poeta de lírica feição
na penumbra da noite espirrar
desencadear tempestade infernal

os estorninhos  todos a desarvorar
eles que nem dão para grelhar
Toda a gente já viu o desatino
que os bandos podem causar
O Saramago viu-se grego
na Jangada para os aquietar

Um desígnio nobre de campanha:
plátanos para poiso de poetas:
os vivos às horas de calor e à noite
distribuídos pelos galhos mais altos
os passados à horizontal posição
os da outra dimensão

Parece-me uma boa proposição
já para a próxima eleição
Além do mais um plátano
é um calendário no estado puro:
anuncia as estações pelas cores
Melhor que o dos pneus michelin


hajota