sábado, 1 de fevereiro de 2020

Corpos da guerra e da paz


Que ninguém lhes diga - Olhai como vivem os homens da terra.
Às aves nada temos para lhes ensinar.

Lídia Jorge, O Livro das Tréguas, excerto de Aos Despidos


júlio pomar
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Helena dividida roubada amuralhada
moveu vontades, e o mar de Troia
transbordou barcos nas areias quentes
Os guerreiros romperam rocha, 
e os guardas tombaram 
pela necessidade de morrer

 Mercenários violaram praças
a romper hímens 
na penumbra do temor, 
acicatados pelo suado desejo
dos corpos da guerra e da paz 
Até à exaustão

Todas as epifanias foram resolvidas 
nas vísceras pelos sacerdotes 
Em premonições proclamaram o estado 
da morte a acontecer

O mar recebe e dá aos corpos 
a dimensão que tiveram em vida, 
sem cobrança de dízimo,
e as escarpas aguardam os suicidas
que escolhem a profundidade 
da liberdade

Calcorrearam paralelepípedos sem fim
para encontrar um poiso, 
um vão de escada,
uma enxerga, um bosque 
virgem, um dorso de serra 
onde o perfume do ventre cobiçado, 
liso dourado esvoaça
entre rosmaninhos e murtas 
ao vento

Estrangeiros, na estranheza negra 
dos corvos, os deuses 
não lhes deram linho
nem sequer singelo limbo  


                             hajota