segunda-feira, 22 de junho de 2015

€€€ Jogos de crianças €€€

Era uma vez! Normalmente, é assim que começam as fantasiosas histórias infantis. Esta não.

Havia no meu bairro, quando eu era criança, um menino rico que tinha uma bola de catchu. Apesar de rico e de ter bola sentia-se triste por não ter com quem jogar. Então, certo dia, resolveu descer ao terreiro onde a garotada se reunia e brincava aos jogos mais inverosímeis,  plenos de improvisação e imaginação, abundantes naqueles que têm de inventar a vida a cada dia: naquelas cabecitas de cabelo à escovinha fervilhavam mil e uma ideias, como no interior dum vulcão, prontas a explodir.

O menino rico desceu à rua e foi logo rodeado por uma caterva de garotos de pés nus. Passados os momentos iniciais, de surpresa pelo inusitado encontro, o conhecimento mútuo fez-se, naturalmente, com manifestações de júbilo e amizade, risadas, palmadas nas costas e o indisfarçável desejo de afagar aquela bela bola. É que, habitualmente, a malta jogava com bolas de trapos, feitas a partir de meias de senhora, habilidosamente cheias e cozidas com fio norte para lhes dar consistência e reforçar a sua forma esférica. Jogar uma partidinha de rua com aquela bela bola de catchu era o supremo deleite, um luxo.

Propôs o menino rico que se formassem equipas, se jogasse, mas, de imediato, todos olharam para as botas que ele trazia calçadas e, à uma, proclamaram que tratando-se de um jogo, as condições deveriam ser iguais para todos: “se quiseres jogar connosco, tens de descalçar-te”.  Apesar de inicialmente receoso, o menino rico concordou e arrumou as botas na berma. Jogaram toda a tarde até luz que fusco. Felizes!

Entretanto, passaram-se alguns anos e toda aquela catraiada cresceu, uns mais do que outros, é certo. Mas, “democraticamente”, em função das "possibilidades de cada um", todos passaram a usar sapatos. E continuaram a jogar a bola em sofisticados locais, sempre escolhidos pelo menino rico, não nos terreiros improvisados da infância. Apesar da democracia e da solidariedade instituídas, a sorte de cada um adivinha-se facilmente pelos sapatos: basta mirá-los.

Já me esquecia de revelar um pequeno pormenor técnico no jogo actual: agora, o menino rico recusa-se a descalçar as suas sofisticadas chuteiras alegando estarem todos calçados. O problema é que há muitos a jogar de alpergatas.


Logo, ao fim da tarde, vai haver jogo.


Cronos deora os filhos, tela de Goya

8 comentários:

  1. Houve adiamento...

    Beijos, Agostinho. :)

    (estás bem?)

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  2. Agostinho,
    Uma história de arrasar.
    Fez-me lembrar "as botas" de Van Gogh.
    Teremos evoluído, mesmo?
    Boa noite. :))

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  3. O jogo continua, Agostinho.
    Sempre que se anuncia um fim, há mais um adiamento.
    Mas tem que chegar ao fim, a um fim.
    Aquele abraço, votos de boa semana

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  4. donde se poderá concluir que entre o pobre e o rico "o jogo" não é um jogo "a feijões"...

    abraço

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  5. Por quanto tempo?? Porque o jogo nunca chega ao fim...Há sempre um prolongamento...
    Brilhante...
    Beijos e abraços
    Marta

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  6. Existirá sempre alguém mais bem calçado.
    São os desequilíbrios da sociedade.

    Abç

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  7. o jogo continua e não terá fim
    os jogadores (sem o saberem) vão sendo substituídos.
    beijo
    :)

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  8. As desigualdades cada vez se acentuam mais... Gostei muito desta história. Parece que estava a observar tudo... Obrigada, Agostinho.
    Um beijo.

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