Era uma vez! Normalmente, é assim que começam
as fantasiosas histórias infantis. Esta
não.
Havia no meu bairro, quando eu era criança, um
menino rico que tinha uma bola de catchu. Apesar de rico e de ter bola sentia-se
triste por não ter com quem jogar. Então, certo dia, resolveu descer ao
terreiro onde a garotada se reunia e brincava aos jogos mais inverosímeis, plenos de improvisação e imaginação, abundantes naqueles que têm de inventar a vida a cada dia: naquelas
cabecitas de cabelo à escovinha fervilhavam mil e uma ideias, como no interior
dum vulcão, prontas a explodir.
O menino rico desceu à rua e foi logo rodeado
por uma caterva de garotos de pés nus. Passados os momentos iniciais, de surpresa
pelo inusitado encontro, o conhecimento mútuo fez-se, naturalmente, com manifestações
de júbilo e amizade, risadas, palmadas nas costas e o indisfarçável desejo de afagar
aquela bela bola. É que, habitualmente, a malta jogava com bolas de trapos, feitas a partir de meias de senhora,
habilidosamente cheias e cozidas com fio norte para lhes dar consistência e reforçar
a sua forma esférica. Jogar uma partidinha de rua com aquela bela bola de
catchu era o supremo deleite, um luxo.
Propôs o menino rico que se formassem equipas,
se jogasse, mas, de imediato, todos olharam para as botas que ele trazia calçadas e,
à uma, proclamaram que tratando-se de um jogo, as condições deveriam ser iguais
para todos: “se quiseres jogar connosco, tens de descalçar-te”. Apesar de inicialmente receoso, o menino rico concordou e arrumou as botas na berma. Jogaram toda a
tarde até luz que fusco. Felizes!
Entretanto, passaram-se alguns anos e toda
aquela catraiada cresceu, uns mais do que outros, é certo. Mas, “democraticamente”, em função das "possibilidades de cada um", todos passaram a usar sapatos. E continuaram a
jogar a bola em sofisticados locais, sempre escolhidos pelo menino rico, não nos
terreiros improvisados da infância. Apesar da democracia e da solidariedade instituídas,
a sorte de cada um adivinha-se facilmente pelos sapatos: basta mirá-los.
Já me esquecia de revelar um pequeno pormenor
técnico no jogo actual: agora, o menino rico recusa-se a descalçar as suas
sofisticadas chuteiras alegando estarem todos calçados. O problema é que há
muitos a jogar de alpergatas.
Logo, ao fim da tarde, vai haver jogo.
Cronos deora os filhos, tela de Goya |
Houve adiamento...
ResponderEliminarBeijos, Agostinho. :)
(estás bem?)
Agostinho,
ResponderEliminarUma história de arrasar.
Fez-me lembrar "as botas" de Van Gogh.
Teremos evoluído, mesmo?
Boa noite. :))
O jogo continua, Agostinho.
ResponderEliminarSempre que se anuncia um fim, há mais um adiamento.
Mas tem que chegar ao fim, a um fim.
Aquele abraço, votos de boa semana
donde se poderá concluir que entre o pobre e o rico "o jogo" não é um jogo "a feijões"...
ResponderEliminarabraço
Por quanto tempo?? Porque o jogo nunca chega ao fim...Há sempre um prolongamento...
ResponderEliminarBrilhante...
Beijos e abraços
Marta
Existirá sempre alguém mais bem calçado.
ResponderEliminarSão os desequilíbrios da sociedade.
Abç
o jogo continua e não terá fim
ResponderEliminaros jogadores (sem o saberem) vão sendo substituídos.
beijo
:)
As desigualdades cada vez se acentuam mais... Gostei muito desta história. Parece que estava a observar tudo... Obrigada, Agostinho.
ResponderEliminarUm beijo.