segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Silêncios

Atropelamento e fuga


Era preciso mais do que silêncio,
era preciso pelo menos uma grande gritaria,
uma crise de nervos, um incêndio,
portas a bater, correrias.
Mas ficaste calada,
apetecia-te chorar mas antes tinhas que arranjar o cabelo,
perguntaste-me as horas, eram 3 da tarde,
já não me lembro de que dia, talvez de um dia
em que era eu quem morria,
um dia que começara mal, tinha deixado
as chaves na fechadura do lado de dentro da porta,
e agora ali estavas tu, morta (morta como se 
estivesses morta), olhando-me em silêncio estendida no asfalto,
e ninguém perguntava nada e ninguém falava alto!

Manuel António Pina, poesia, saudade da prosa - uma antologia pessoal, Assírio & Alvim


Foto: Gilberto Jorge



Que é feito do som que escorria 
por entre as corolas 
das madrugadas de dezembro?

Sei de saber certo, normativo, 
que me veio como boletim
informativo das sete

naquela manhã cálida e 
esplendorosa de julho
sol nascente cor de sangue

escrito numa folha de papel:
o vento já não lhe mora no peito 
pela noite um lago negro feito

O cisne encarquilhou-se nas penas 
e nem as melíficas madeiras vibraram
um som de sinal nas flautas do pinhal

Adormeceu irremediavelmente
na mais negra noite vestido
quando ainda era tempo de trabalhar

Ele que de olhos cansados das vigílias
dos dias grandes permanecia
diligente na consecução do cristal

Com linhas atava indecisões
nos momentos derradeiros
sem margem para cobardia

A vida tem direitos e avessos
e entre uma face e a outra dá-se-
-lhes um ponto que as abrace - dizia

O sangue vermelho coalhou e 
as carnais conformações 
- pele nervos músculos –

são pó estéril em torvelinho
e os ossos inertes permanecem
em defunção no frio do silêncio

Já não adianta esperar 
a firmeza quente das mãos 
íntegras o pão e as carícias

e nem as melíficas madeiras 
das flautas vibram no pinhal 
o timbre o ritmo qualquer sinal


hajota 


23 comentários:

  1. Intenso, profundo, belo!

    Guardo silêncio, do tanto que senti no poema...

    Beijo

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  2. Costumo dizer aos meus alunos: «Ao poeta tudo é permitido.» Mas... pôr-nos assim o coração em desconcerto ... não sei se será lícito...

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  3. Gosto destes silêncios, que por aqui, se fazem ouvir...
    Gostei imenso desse atropelamento e fuga... neste caso um silêncio, que definitivamente gritou mais alto, do que qualquer outro som, que se tivesse feito ouvir, nos atropelos da vida...
    O segundo poema... presumo que seja da autoria do Agostinho... como ainda sou maçarica, por aqui... ainda estou a conhecer os cantos à casa...
    Pois cá está outra forma de silêncio, muito bonita... neste caso uma ausência sentida, para sempre... em ritmo e timbre...
    Em Dezembro... definitivamente... todos os nossos silêncios... se sentem, e se fazem ouvir e também recordar, mais alto!...
    Um belo e tocante poema, Agostinho!
    Abraço! Boa semana!
    Ana

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  4. Silêncio e tanta gente, era assim, não era, Agostinho??
    Aquele abraço

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  5. O silêncio feito de vida e morte. A demora da espera que fica no olhar: presença sem voz, memória que só o coração guarda...
    Um poema magnífico que não me sinto à altura de comentar, amigo Agostinho.
    Também gostei de encontrar aqui o poeta Manuel António Pina.
    Um beijo

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  6. Belo poema sobre a partida!

    (O Pina é magistral!)

    Beijos, Agostinho. :)

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  7. Existem momentos em que só mesmo o silêncio sabe chorar uma morte assim tão sentida...
    Que os dias que antecedem o Natal te cheguem nos sorrisos espelhados nas estrelas que os homens de bem sabem deixar voar...
    Helena

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  8. Resta apenas o tempo nas memórias....
    Num silêncio desesperado...
    Gostei muito...
    Beijos e abraços
    Marta

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  9. Tantos são os silêncios

    o António Pina uma referência

    Abraço

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  10. Este sopro de vida. É por este sopro que o poeta confirma o poder da palavra, a força do silêncio.
    E o que não falta é audição nos dois poemas.
    Duas peças para serem lidas e relidas.

    Forte abraço, meu caro poeta!

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  11. fico sem voz perante o rasgar das palavras em carne viva.

    forte abraço

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  12. Lindo caminhar..pela estrada fecunda do poetizar...adorei td por aqui...como sempre querido amigo Agostinho.

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  13. Dois excelentes poemas.
    De dois grandes autores.
    Agostinho, caro amigo, tem um bom fim de semana.
    E um NATAL MUITO FELIZ, na companhia dos que te são mais queridos.
    Abraço.

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  14. Como os avessos são tão direitos...

    Beijo

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  15. ~~~
    ~~~~ Pouco se fala neles, porém, estão sempre a acontecer...


    Memórias de momentos de muito tormento, espanto e insanidade,

    ~~~~~~~~~ muito bem expressos neste sentido poema.

    ~~~~~~~~~~~~~~~~~ Grande abraço amigo.
    ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

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  16. Também aqui ao seu espaço, venho desejar-lhe um Santo Natal, com tranquilidade e paz...

    Um abraço amigo

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  17. Um belo casamento entre a prosa de Pina e a sua poesia.
    Parabéns.
    Bom Domingo.:))

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  18. Olá, Agostinho
    Obrigada pela simpatia das suas palavras.
    Lamento que não tenha estado presente no lançamento do meu livro, mas... se quiser ter uma ideia... pode ver o post que sobre o mesmo publiquei no dia 12, largamente documentado por fotos.
    Apareça!
    Quanto à aquisição do livro nada mais fácil:
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    Estes dois poemas, qual deles o melhor, são dois silêncios que gritam bem alto!
    Emocionantes, fazem vibrar o âmago.
    Excelentes, mesmo.

    Feliz Natal.

    Beijinhos
    MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS

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  19. .

    .

    . venho desejar.Lhe um santo natal . para Si e para todos em e de Sua casa .

    .

    . e desejo.Lhe também que o ano de dois mil e dezasseis Lhe seja um universo de Paz de espírito e com muita saúde .

    .

    . boas.festas . e,,, um grande abraço meu .

    .

    .

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  20. Querido Agostinho,

    Logo no início da leitura com a poética do Pina, transbordei em lágrimas...
    Depois esta foto linda tão representativa da dor (perda)!
    Na continuação da leitura bem atrapalhada pela minha emoção de lágrimas,
    como "a vida tem direitos e avessos" que rasgam na pele, a dor da alma,
    a tão dorida perda e como deixar cada passo do amanhecer acontecer
    novamente, serão manhãs do sol noite!...
    O silêncio se restaura por dentro com a luz presente,Poeta!
    Muito belo e comovente!...
    Beijo e sinta o meu abraço de paz solidário!

    Ps: Aprecio muito a tua presença luminosa no meu espaço...

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  21. "são pó estéril em torvelinho
    e os ossos inertes permanecem
    em defunção no frio do silêncio"

    Há várias semanas que não visitava o teu Grande Mundo, AJ.
    Motivos vários: algumas rotinas quebradas; falta de tempo (!)...
    Hoje pude retomar e deparei (entre outras belas peças) com esta pepita. É mesmo daquelas cujo brilho rasga o breu mais negro. Por mim, é para figurar na antologia pessoal.
    Parabéns!
    Abraço e um Ano Novo inspirador!

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