De 25/06/1959. Podia ter sido ontem, foi hoje. Jorge de Sena sempre no futuro do presente.
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Carta a meus filhos sobre
os fuzilamentos de Goya
Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por
vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de
sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam
vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse
memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadela de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
multas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.
jorge de sena
Temo que a memória se entorpeça ante tanta dor e ódio repetidos.
ResponderEliminarBeijos, Agostinho
... e nós ao longe
ResponderEliminaraqui tão perto
Abraço poeta
O HORROR parece não ter limite nem fim
ResponderEliminarQue seja grande o mundo
ResponderEliminarDentro de cada um de nós.
E acolhedor.
Abraço.
Este poema de Jorge de Sena, que tantas vezes leio, está sempre actual. E é tão lúcido tudo o que o poeta diz que se fica sem palavras e a emoção envolve alguma esperança que resta. Porque eu repito com ele: "Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la." Obrigada, meu amigo Agostinho por partilhar aqui este poema tão a propósito...
ResponderEliminarUm beijo.
tão antigo e tão actual
ResponderEliminar:)
boa páscoa
beijo
:)
Não se sabe... Não se sonha... Medo... Dor... Que mundo ficará na memória?
ResponderEliminarNão sei...
Obrigada pela partilha
Beijos e abraços
Marta
Jorge de Sena, um dos grandes, entre os maiores, da nossa ESCRITA !
ResponderEliminarInfelizmente tão pouco conhecido.
Um abraço.
Fizemos a mesma escolha
ResponderEliminartalvez alguém nos oiça
Há flores no chão que pisamos
ResponderEliminarObrigado por fazer recordar este belíssimo texto.
ResponderEliminarA vileza do homem! Porquê?
beijinho
Exatamente Agostinho é hoje o futuro do presente. Resistiremos ou morreremos todos?
ResponderEliminarlutaremos ' pela liberdade e a justiça'?
Precisamos de mais Jorges de Sena.Belíssima carta !
obrigada pela partilha ,
deixo abraços
Um poema que emociona pela verdade, crua e contundente. Feliz escolha. Abraços.
ResponderEliminara poesia é uma arma, também...
ResponderEliminargostei de ler. aqui.
abraço
Olá, Agostinho
ResponderEliminarEstou aqui, para te desejar um Tempo de Quaresma: agradável.
Paz e Alegrias.
Feliz Páscoa.
como se fora hoje, é este o mundo, o nosso
ResponderEliminarum abraço
Uma leitura preciosa sobre uma lucidez dorida!...
ResponderEliminarGrata pela generosidade da partilha!!
Olá, como está?
ResponderEliminarHoje venho apenas desejar-lhe uma Boa Páscoa!
Um abraço!
Face também aos acontecimentos, por estes dias em Bruxelas... um poema tão dolorosamente actual...
ResponderEliminarO tempo passa... a tacanhez humana de espírito permanece... e o mundo não muda... fica igual...
Uma extraordinária partilha, por aqui, Agostinho!!!! Um poema excepcional!
Aproveitando para lhe desejar um bom fim de semana, e uma feliz Páscoa, na companhia dos seus...
Abraço
Ana
Que, na Páscoa, nossa fé seja revigorada pela certeza
ResponderEliminarde que Cristo ressuscitou e está entre nós!
Deus habite em seu interior constante podendo fazer de
sua vida tempo de alegria.
Feliz Páscoa.
A você e toda sua família .
Um excelente final de semana
beijos .
Evanir...
Uma verdade nua e crua e tão actual. Um abraço com carinho
ResponderEliminarEscritor extraordinário! Como conseguiu escrever tanto e tão bem? Como conseguiu estudar tanto, trabalhar tanto, traduzir tanto? Fora de série e tão mal tratado nesta país de cegos...
ResponderEliminarTão actual. Um poema que já li dezenas de vezes na minha vida e cada vez que o leio é a realidade dos dias actuais que vejo ante os meus olhos.
ResponderEliminarA Poesia de Jorge de Sena tem esse efeito...
Grata por partilha.
Um abraço
... e a lição tão pouco foi aprendida.
ResponderEliminarLi com o coração apertado, Agostinho.
Beijinho.
Um poema que sempre me arrepia quando o leio.
ResponderEliminarUm beijinho e boa semana amigo Agostinho
Fê
Pelo menos aqui há uma unanimidade. Jorge de Sena era de fato um escritor extraordinário.
ResponderEliminarBastante estudado por nós, aqui, no curso de Letras, da nossa universidade.
Forte abraço,
Agostinho olá, boa tarde! Agradeço a visita no meu blog.
ResponderEliminarNão conhecia Jorge de Sena, gostei de ler, me parece de muita força e verdade.
Um beijinho e uma ótima semana.