domingo, 25 de outubro de 2015

Nunca é tarde


http://cargocollective.com/raquelaparicio/JWT




E se eu disser que nunca é tarde
quando sopra o vento da indiferença
marcada a cruz na aridez dos dias
numa  folha de calendário
como faz o condenado ao fadário
- solidão, melancolia desesperança -
que a sorte pode mudar
para o vislumbre da perfeição?

Que me dizes então da felicidade
da partilha do eu e do teu
de reter o belo na mão
a seda fresca de verão
o veludo quente de inverno
do arrepio-tremor
- coisa única que deslumbra?

Que me dizes do fulgor
que remexe interiores
onde se recolhem fogo e cores  
os dourados iluminados de pôr do Sol
brotando à superfície
- num ápice - 
percepção do fim do mundo
a opulência de uma epifania
a dádiva de ser pertença
a eternidade num minuto

quando o mar parecia
em horizontal dormência
nunca é tarde 



hajota

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Sede de desejo


Marc Chagall, les amants sur le toit






Acontece
ao correr da madrugada
mesmo sem troca de nada
um dobrar de campainhas
como quando cruzavas o cancelo

Soltavas o cabelo e vinhas
deitar-te à sombra das glicínias
que desabrochavam num apelo

O sonho repassa qualquer um
entretanto passa e amanhece.


hajota

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

É tempo

na indução da vontade
é hora da verdade
http://relogiodependulo.blogspot.pt/2015/09/o-tempo-e-malho-e-forja.html

fotografia de Gilberto Jorge


Heróico herético poeta lança,
lança o fogo à forja e
a raiva e o sal derramado
no ardor da luta, soldado,
o malho a acordar a esperança
hoje amanhã e na hora
para que a palavra se cumpra
na dimensão inteira do homem

e, apesar de tudo que parece
nada, a palavra permanece
E hei-de ouvi-la sair da noite,
das brumas que ondulam
impacientes o tejo, a canção
heróica herética poética.

hajota

terça-feira, 22 de setembro de 2015

No princípio era o azul



................................................................

E abraçam-se de novo, já sem asas. 
Homens apenas. Vivos como brasas, 
A queimar o que resta da inocência. 

Miguel Torga,  
excerto do poema Amor, in 'Libertação' 



http://olharemtonsdeflash.blogspot.com/



No princípio era o azul
sem marcas nem fronteira
tudo fluía sem regra ou maneira
num imenso manto de tule

Reza um escrito muito antigo
quando ainda escrita não havia
que no dia que se fez dia
criou Deus a Eva cor de trigo

E a magia do azul fez-se em dois
sublimando diferente o céu do mar
e fixou Deus a ordem primeira: amar
Só então surgiu Adão, depois



hajota

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Alagados sem asas de voar

Keeping Quiet

E se assim fosse
nem que fosse
por um dia apenas
o fim de todas as penas ?

Perhaps!


 Hajota 

| http://cargocollective.com/raquelaparicio/filter/books/Las-Flores-de-Irina |



Fui descansar os olhos ao rio
do vento que vem de longe
donde os barcos perdem o fio
que os conduz ao norte

Mergulhei os pés na água
e senti um frémito no mar
aflito encarapelado: a mágoa
de mil pássaros a estrebuchar

Olhei no cais o mastro de marear
e das gaivotas que faziam vela
na esperança de chão para amar
nem uma restava vinda nela

Vi apenas o arrepio negro
dos corvos em conciliábulos
com ar pestilento de egro
na vã figura de mandar: ridículos

impantes na sua putrefacção
com armanis sedas e perfumes
simulam actos de compunção
quando lhes chegam queixumes

dos mil pássaros a estrebuchar
alagados sem asas de voar
São servidos à hora de jantar
logo e até quando calhar

Vou descansar os olhos ao rio



hajota



domingo, 30 de agosto de 2015

Caligrafias


Ainda há quem escreva 
faça letras entre linhas?
Em cadernos de duas linhas
se fez a mão em jogos 
medos e adivinhas

 | http://cargocollective.com/raquelaparicio/




















Há-as com a inclinação dos certinhos
de palavras aparadas como sebes
que seguem o traçado da linha
do chão sem acidentes
induzidos na dormência
pela onda do vento que atravessa a planura
É a tendência dos submissos
que mesmo na ocorrência de ondulação
dorsal de todo inesperada
se mantêm na uniformidade
imperturbável da sesta ordenada


Há-as também a invocar artes circenses
dos que atiram facas ao ar
com éles tês dês e até com mudos hagás
Ou as dos que se denunciam com tendências
mortais para assassínios e suicídios fatais:
cravam na linha como se fossem punhais
os pês os bês os dês os guês os jotas os quês
- por gravidade são mais
E há caligrafias marcadas pela contradição
dos que aparecem em extremada posição
de sintomatologia bipolar: os éfes
Oscilam num ai da euforia à depressão 
com humores de difícil compreensão
São estas as que se prestam à vaidade
aos rococós e excessos de exibição


Há ainda a escrita suprema 
a que flutua deitada no espaço 
entre os limites do azul das linhas 
onde correm brisas a despentear fumos e
incensos rítmicos à medida dos momentos
sinais e códigos cuneiformes - os inscritos
há milhares de anos pelos sumérios
nas tabelas sagradas da memória
É nesta que a liturgia imperceptível ao olhar
comum se oferece à decifração
dos iniciados da abstracção material
dos que tentam por tentativas a invenção 
 mergulhos na profundidade dos abismos
e na elevação galáctica nas divinas imperfeições
na fecundação das metáforas uterinas 
que é a carne da poesia



hajota



domingo, 16 de agosto de 2015

E ainda hoje metáforas pintadas às cores


Man and woman in café, Pablo Picasso, Wikiart

Atrás dum copo de bagaço
de roupa escassa e esgarça
gelada gente ficava esquecida
no café refúgio da esquina
adiando o esquálido conforto das frias casas
mais frias do que as pedras
da calçada negra branca
Isto naquele tempo pardo cinzento


E ainda hoje
apesar das metáforas pintadas às cores
Como a mulher de blusa azul celeste
de eterna bandolete a cingir-lhe
na iminência dum número de palhaços
a fronte pintada pronta
na mesa do café: chávena pires colher
num monólogo mudo todo o dia

Que barco de mulher esconde
encalhada na ilusão das triviais revistas   
de trás para a frente da frente para trás
a folhear a subtração irremediável do tempo
segundo a segundo tic-tac tic-tac
num relógio sem ponteiros

Hoje como ontem hesitações de toutinegra
no galho nervosa em flexões de pernas
indecisa no regresso ao lugar de pernoita
por saber de cor a côr do frio
o som do quebrar de cristais
de cálcio das artroses futuras

Ainda hoje apesar das metáforas
com que nos pintam a vida



hajota