sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Havia chão terra

Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?

Ruy Belo, Boca Bilingue      
(estrofe de Morte ao meio-dia)




Robert Gonsalves



Havia chão terra
que mudava de cor e cheiro
consoante a estação
Nele se cravavam mãos arado
e a pão o aroma crescia depois

Havia árvore:
ramos folhas e frutos
e ninhos e ovos e pássaros
e garotada em alvoraço dependurada
na descoberta do universo e de si

E havia roupa esgarçada
e ralhos de mãe
A vida tem memória nas coisas
que ficaram daquele tempo ainda
Ainda pela precaridade de tudo

E tudo é homem é terra água ar
do tempo em que havia tempo
como no tempo das férias grandes
agora quase nada
que se faz pó e cinza

Hoje há compram-se
comportas de brincar aos pobrezinhos
resorts a abarrotar excentricidades 
ruralidades plastificadas
tudo ao gosto do cliente kitsch

E as serras queimam-se
para requalificar ao jeito de quem vier:
rolas árvores quintais avós...
de preferência importados
Há alguém que se importe?

hajota

39 comentários:

  1. Poucos são os que, importando-se, se baseiam no real valor das coisas. Porque muitos dos que se importam, estão apenas interessados em arranjar culpados e, daí, retirar as suas vantagens, sejam elas políticas ou outras.
    Haja mais chão terra para todos, resumindo...
    Excelente poema, parabéns.
    Bom fim de semana, caro Agostinho.
    Abraço.

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  2. Espero que sim... Porque há memórias felizes que descobrimos nesse tempo que não podemos deixar que se esqueça de nós..
    Gostei muito.... Vou estar fora uns dias; regresso a 29.
    Beijos e abraços
    Marta

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  3. Que saudade me trouxe esse "havia"

    Bom dia, lhe desejo eu, enquanto há tempo para lho desejar


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  4. Gostei muito de te ler...
    Muito bem regressado, Amigo... e com o pé direito...
    Quem não gostava de subir às árvores? Até eu, quando menina
    gostava de isolar-me nesses refúgios... Belas recordações!...
    A ironia da última estrofe está brilhante e assaz perfeita.
    O meu abraço, hajota.
    ~~~~~~~~~

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  5. Há tanta coisa aqui expressa
    que me trouxe os tempos
    em que eu era feliz e o não sabia.

    Tão bem retratada está a dura realidade actual.
    Dói-me o coração, Agostinho.
    Não, ninguém se importa...

    Bem-Vindo, Amigo!

    Um beijo.

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  6. Há quem se importe com tudo isso, mas quem se importa a voz não conta, infelizmente. Boa tarde Agostinho

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  7. Muito belo este poema, meu Amigo Agostinho.
    Um poema a resgatar instantes do passado guardados na memória. Com o tempo lento da infância. Os gestos inocentes. O vagar da terra. A voz da mãe. A casa. O aroma do pão e da fruta.
    Depois, o sobressalto deste tempo. Aquilo que não o deixa indiferente. Porque se perturba. Porque se emociona. Porque se importa.
    Eu também me importo.
    Parabéns e obrigada Poeta.
    Um beijo.

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  8. Muito atual, muito sério, muito intenso.

    De facto, "quem se importa?" . Ninguém se importa...

    Beijinho poético...

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  9. Um dia seremos de novo crianças
    Já somos
    Abraço

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  10. quando o presente se enrola no passado e traz memórias boas (muito)
    e quando se questiona o porque no presente de certas atitudes que não se entende muito bem
    mas quero crer que sim...que alguém se importa
    muito belo
    beijinhos
    :)

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  11. Um poema reflexivo e que leva à reflexão.
    O ontem e as memórias românticas e do hoje, que memórias ficarão?
    Gostei muito :)
    beijinho

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  12. O ontem e o hoje, Agostinho.
    Não precisava de haver uma mudança tão radical.
    Mas houve e temos que nos conformar com isso.
    Aquele abraço, boa semana

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  13. Tudo era natural... e autentico... no tempo em que havia tempo...
    Hoje em dia... com a falta de tempo... dá-se um jeito até de apreçar o tempo... para tudo mudar, a nosso belo prazer... queimar para requalificar... é só um exemplo...
    Ruralidades plastificadas... é mesmo isso, a que se assiste, nas poucas áreas rurais... que ainda teimam em persistir... aqui e além... por entre o que ainda falta arder...
    Um poema extraordinário... pela assertividade e contundência... que me ficará também debaixo de olho... para qualquer dia destacar umas palavrinhas, lá no meu canto, com um link para aqui, se me permitir, Agostinho!
    Adorei cada palavra! Beijinho! Continuação de uma feliz e inspirada semana!
    Ana

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  14. Sim, poeta, "havia chão terra", uma realidade em que a natureza era
    companhia em todos os lugares; na janela, no jardim, no quintal,
    nas praças. Todas as brincadeiras com o pé descalço, a sentir a terra
    e as árvores no percurso poético dos ventos. Havia mãe que limitava
    no equilíbrio da disciplina e cuidados de afetos...
    A importância desta experiência-história da vida ao natural,
    da memória de um poeta, a caminhar com as palavras em um
    grande e belo voo em testemunho que "havia chão terra" com
    a brincadeira da vida no brilho de ser criança!...

    Adorei!!!
    Bjs

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  15. Sim, havia tanta maravilha.
    E há tanta vontade de destruir...
    Pena!

    abraço
    Lola

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  16. A leitura do texto nos leva a muitas reflexões. Um texto excelente. AbraçO

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  17. Eu importo-me... entristeço-me.
    Dizem que é doença da globalidade, mas será só isso?
    Não será também, a ganância... a vaidade...o vazio?
    Beijinho.:))

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  18. Passei para ver as novidades.
    Mas gostei de reler o teu excelente poema.
    Bom resto de semana, caro Agostinho.
    Abraço.

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  19. De mão cheia, Agostinho!
    Andava já um pouco esquecido deste "mundo" em que te espraias como poeta (culpa da tua prolongada mas bem justificável pausa). Mas, que delícia, ao regressar!
    Permite-me só um reparo (vais desculpar-mo porque me conheces muito bem):
    Quando deres os últimos retoques antes da publicação em livro, melhora as últimas duas estrofes, sobretudo a última... Ficam um pouco deslocados aqueles estereótipos prosaicos e politicóides de "requalificar ao jeito de quem vier"; "de preferência importados"; "há quem se importe?" No meu modesto entender, o poema, muito belo, já é suficientemente incisivo sem esses acessórios que nada têm de poéticos e que lhe retiram elegância...

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  20. Bella imagen y poesía, un placer visitar tu blog.

    Besos.

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  21. Apreçar?!?! É apressar... é no que dá as pressas... :-D
    Porque o tempo... é um bem sem preço...
    Passando para deixar um beijinho, e os meus votos de uma boa semana! E aproveitando para corrigir os meus erros de português... :-D
    Ana

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  22. São tantas mudanças, e o homem destruidor pouco se importa com as avarias que causa ao planeta. Um excelente texto que nos remete á reflexão.
    Gostei do seu blog Agostinho.
    Abraço!

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  23. Nem tudo foi bom ontem, nem tudo é bom hoje.

    Continuam os ralhos de mãe e garotos formatados ao século XXI que necessitam urgentemente de terra, lama e pó. Água no chão, fruta pendurada na árvore para despertar a consciência de que nada cresce sem a importância das coisas mais simples.

    Eu importo-me!

    Lindo poema que se converte em dura realidade.

    Abç

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  24. Tudo o chão leva. Os babeiros de chita aos folhos redondos, os calções e joelhos rotos no escorrega das ribadas, as fisgas, os peões, a macaca, as bonecas de pano, as histórias nas noites longas de inverno...e tudo vai perdendo a força, na força que ainda persiste em ser menino/a.A mãe vai partindo o coração, o pai perdendo a razão naquela autoridade de dizer NÃO! Tudo parte. Mas o tempo ainda nos segura para testemunhar a nossa índole, a nossa arte.
    Beijinho, A.

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  25. Feliz de quem tem, pelo menos, boas recordações de infância!
    Porque na aridez que fica depois que o fogo tudo consome, há que procurar forças onde as houver para sobreviver a tanta mudança.
    Para além de um lindo poema... uma óptima reflexão.

    Obrigada pelas boas vindas na minha "CASA".

    Continuação de boa semana.
    Beijinhos
    MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS

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  26. Ainda há quem se importe, sim.

    Quem escreveu o poema e quem o sente como seu, por exemplo.

    Abraço com votos de bom fim de semana

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  27. Raramente alguém de verdade se importa e quando se importar trate de abraçar :)! Beijo

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  28. Olá, boa noite! estou devorando a sua página de conteúdo instigante! tenha um fim de semana fabuloso!!!

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  29. Passando... para deixar um beijinho, e os meus votos de continuação de uma excelente semana!...
    Ana

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  30. Vim à procura de mais...
    Mas gostei de reler este teu excelente poema.
    Bom fim de semana, caro Agostinho.
    Abraço.

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  31. Havia chão terra . Há ainda terra onde se plantaram as flores que vao partindo . Há terra onde as árvores plantadas se vão deixando cair em pedaços no chão . E dele vêm agora os aromas da saudade , noutro outono sem idade .
    Bji , A.

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  32. É meu amigo poeta, o planeta está lotado. Não cabe mais ninguém e o pior - cada vez mais desértico pelos desmandos dos homens, cada vez mais inóspito pela vingança reativa da natureza. Portugal foi exemplo das queimadas. EUA e ilhas caribenhas pelos furacões, Brasil agora pela estiagem e antes pelas inundações... e segue o cortejo... Belo poema, amigo! Parabéns! Grande abraço. Laerte.

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  33. Qué razón tienes que la vida tiene memoria de las cosas.

    Me ha encantado tu poema.

    Un placer estar en este precioso rincón.

    Un beso y feliz tarde.

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  34. Belo poema! reflexivo e nostálgico!

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  35. Deixando um beijinho e votos de um feliz domingo, e uma óptima semana!...
    Ana

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  36. Uma boa pergunta e reflexão para este mundo plastificado e sem graça, se comparado ao passado, no quesito peraltices, brincadeiras e liberdade na infância. Que saudade das minhas nonnas. Não conheci meus nonnos, já tinham partido, quando aqui cheguei. Saudade das casas com muros baixos e portões permanentemente destrancados.
    Adorei a foto, para mim uma viagem ao mundo encantado!
    Um beijo Agostinho e bom domingo.

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  37. Há sim, há gente que se importa. Poetas como tu! Vozes que vão em poesia, deste quilate, deste apuramento da palavra. E acredito que, embora não pareça, vão equilibrando o mundo.
    Foi um sublime momento de leitura.
    Bj Agostinho
    (Tenho demorado pois, cada vez mais, o tempo me é escasso; há afetos e projetos que me chamam, sempre em urgência...)

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  38. Esqueci: grata pela citação, em que me detive; belíssima pintura, muito bem escolhida

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