sábado, 1 de fevereiro de 2020

Corpos da guerra e da paz


Que ninguém lhes diga - Olhai como vivem os homens da terra.
Às aves nada temos para lhes ensinar.

Lídia Jorge, O Livro das Tréguas, excerto de Aos Despidos


júlio pomar
~~~

Helena dividida roubada amuralhada
moveu vontades, e o mar de Troia
transbordou barcos nas areias quentes
Os guerreiros romperam rocha, 
e os guardas tombaram 
pela necessidade de morrer

 Mercenários violaram praças
a romper hímens 
na penumbra do temor, 
acicatados pelo suado desejo
dos corpos da guerra e da paz 
Até à exaustão

Todas as epifanias foram resolvidas 
nas vísceras pelos sacerdotes 
Em premonições proclamaram o estado 
da morte a acontecer

O mar recebe e dá aos corpos 
a dimensão que tiveram em vida, 
sem cobrança de dízimo,
e as escarpas aguardam os suicidas
que escolhem a profundidade 
da liberdade

Calcorrearam paralelepípedos sem fim
para encontrar um poiso, 
um vão de escada,
uma enxerga, um bosque 
virgem, um dorso de serra 
onde o perfume do ventre cobiçado, 
liso dourado esvoaça
entre rosmaninhos e murtas 
ao vento

Estrangeiros, na estranheza negra 
dos corvos, os deuses 
não lhes deram linho
nem sequer singelo limbo  


                             hajota

36 comentários:

  1. Intensa, profunda e linda poesia! beijos, lindo domingo,chica

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  2. Como disse Orwell não há nada mais previsível que o passado porque tudo o que aconteceu no passado contagia o presente. Assim, entendi o mar de Troia com seus vencedores e vencidos como um lastro das mortes que continuam a deixar os despojos dos que morrem a fugir da morte ou da vida… Que poema, meu Amigo Agostinho!
    Um beijo.

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  3. Sempre movendo céus e terra, as Helenas de todos os tempos.
    Uma beleza, as palavras tuas, Agostinho!

    Beijinhos :)

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  4. Um excelente texto poético que transporta memórias
    para amanhãs que se repetem
    Abraço poeta


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  5. Já dizia Camões... Na Terra, tanta guerra tanto dano, tanta necessidade aborrecida... enfim! É este mesmo, o destino destes bichinhos de terra tão pequenos, a que se dá o nome de humanos... o de guerrear-se entre si... afastando-se cada vez mais, de um lugarzinho no céu... de facto... às aves, não temos mesmo nada, a lhes ensinar!... Elas sabem qual é, e qual será sempre o seu lugar... um outro Reino... bem mais pacífico...
    Três talentosas junções, nesta publicação de excelência, Agostinho! Parabéns!!!
    Beijinho! Feliz semana!
    Ana

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  6. Intenso e excelento poema a não deixar esquecer a história.
    Bem escrito como já é habitual.
    Beijinhos
    :)

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  7. um poema de recorte clássico
    em que, como ninguém mais, és exímio

    gostei muito, amigo Agostinho
    grande abraço

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  8. Um passado, consequências de uma guerra em particular que não deixa de representar todas as guerras, onde os vencidos pagam e os vencedores acabam por perder razão nas punições infligidas.

    Um belo poema, pleno de arte

    Abraço

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  9. E são os mesmo que fazem a guerra e a paz.
    Um poema soberbo, os meus aplausos.
    caro Agostinho, um bom fim de semana.
    Abraço.

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  10. Um poema belo, épico, único e invulgar.
    Só comparável à mais bela composição de música clássica.
    Para ler e ficar a meditar de olhos fechados.

    Parabéns, Poeta!

    Beijinhos

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  11. Amigo, primeiramente minha gratidão pela honrosa interpretação exata manifesta por ti, amigo, de nossos sentimentos inerentes à postagem na matéria que expus em meu blog! Tua alma, Agostinho, entrelaçou-se às almas nossas; e me fez feliz. Muito obrigado! Em segundo lugar, mais importante ainda, é a boa qualidade e a minha admiração pelo teu soberbo poema - divino, maravilhoso! Parabéns! Bastaria esse poema para consagrar-te como poeta maior, Agostinho! Ele é extraordinário e bem representado pela imagem do corpo imperando sobre tudo em uma guerra. Em romance que lançarei neste ano do centenário de nossa academia literária descrevo a trajetória de amigo meu herói condecorado por bravura na Segunda Guerra Mundial onde mostro a mesquinhez humana em uma guerra em que eu, para não ser cruel à sensibilidade alheia, faço o ficcional dar conta de um extraterreno a matar a roubar e a odiar, pois o humano não seria capaz de tanta desumanidade que a guerra traz! Amigo Agostinho, parabéns e minha gratidão! Laerte.

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  12. Agostinho,
    Grata pela deliciosa
    viagem em seus versos
    tão lindos.
    Bjins
    CatiahoAlc./Reflexod'Alma
    entre sonhos e delírios

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  13. Como seria possível o mundo de hoje existir sem guerras se já nos tempos de Homero ( e muito antes, ainda) elas existiam?
    Onde houver dois homens... há guerra, com certeza. E depois... fazem também a paz, para, dentro em pouco, recomeçarem a guerra.
    Sempre assim foi e sempre assim será, por muito que nos custe.
    Belíssimo poema, grandioso!

    RE: Agradeço imenso o seu comentário que, para mim, é muito valioso, vindo de uma pessoa cuja escrita admiro muito.
    De momento, o que tenho escrito, em formato de livro perfaz 150 páginas. Mas... o que está na minha cabeça é, pelo menos, outro tanto. Receio que fique demasiado grande... mas o que fazer ao resto da história que fervilha na minha mente? 🤔

    Bom Fim-de-semana
    Beijinhos
    MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS

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  14. Tudo se repete com o contorno próprio da chamada civilização cada vez mais à procura de si mesma .
    Excelente poema, como sempre. Adorei!
    Beijinho A.

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  15. Pobre dimensão humana. Os deuses são uns agiotas, Agostinho, e sobrevivem à laia do nosso sofrimento.

    Grande abraço

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  16. Os deuses quando querem nos castigar atendem as nossa preces.
    Descanse, reflita, sorria, se distraia. O fim de semana é seu! Beijo enorme!

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  17. Vim à procura de mais.
    Mas gostei (deliciei-me mais uma vez) de reler este excelente poema.
    Caro Agostinho, um bom fim de semana.
    Abraço.

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  18. A imagem é linda e o poema, de certa forma labiríntico, abre margens para muitas interpretações. Um abraço, Agostinho.

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  19. A vida a retomar em Macau aos poucos e eu também a retomar os blogues aos poucos.
    Aquele abraço

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  20. Oi Agostinho
    Ler-te é sempre um momento de sublimação_ e me fez lembrar um texto que dizia ser todas as mulheres Helena de Troia_há sempre um Páris a seduzi-las rs
    _e sustenta afirmando ela é a mulher que "todos deseja, idealiza, idolatra, difama, celebra, constrói e desconstrói. Para o bem ou para o mal" ...
    E essa guerra Verdade ou lenda Agostinho?
    grande abraço, obrigada pela honra dos seus comentários.
    beijos

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  21. Agostinho,
    Vir aqui me é um sopro
    de inspiração
    de alegria e criatividade.
    Bjins
    CatiahoAlc.

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  22. Hajota,
    Eu amo vir aqui.
    Suas publicações sempre
    me trasnportam e
    posso pensar poesia.
    Bjins
    CatiahoAlc.

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  23. Poema maravilhoso e forte! Não gostaria de ser pessimista, mas como não ser? Não dá para encobrir o que está tão claro. E assim caminhará a humanidade porque grande parte da essência é essa: cobiçar, lutar, torturar, matar e dar uma pausa pequena para em seguida começar tudo novamente. Há milênios.
    Essa é nossa "essência", o resto é sobremesa que vem aos pouquinhos para dar uma refrescada. Não acredito num mundo totalmente feliz, com mais paz, com ausência de violência. Quando apagamos o fogo de um lado, começa no outro, e assim vamos. Pobres os homens de boa vontade...
    Parabéns, Agostinho, aplausos!
    beijo, um bom fim de semana.

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  24. Apenas uma pequena frase: "" Poema simplesmente magistral ""

    Cumprimentos

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  25. Excelente resumo poético de uma guerra que durou 100 anos
    provocada por Helena que disseram ser belíssima.

    Tão famosa esta guerra mítica, que ainda usamos expressões
    como 'cavalo de Tróia' e 'calcanhar de Aquiles'...

    E as guerras continuam, hoje não há cavalos em batalhas...
    Estão a ser testados 'in loco', drones (cegos)

    Grata pelos bons momentos de leitura
    Tudo pelo melhor
    Abraço
    ~~~

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  26. Poema potente a contar séculos de história e de humanidade!

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  27. Olá, como tem passado.
    Estou a regressar aos blos, mas só em vieiracalado-poesia.blogspot.com

    Agora vou ser mais assíduo.

    Saudações poéticas!

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  28. Boa noite!
    Gostei muito do seu poema!
    Saudações poéticas!

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  29. Poema de uma profundidade sem igual, gerou imagens em minha cabeça.

    "O mar recebe e dá aos corpos
    a dimensão que tiveram em vida,
    sem cobrança de dízimo,
    e as escarpas aguardam os suicidas
    que escolhem a profundidade
    da liberdade "

    trecho de uma beleza sem tamanho.
    Primeira vez aqui no blog, e desejo voltar mais.

    Abraço!

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  30. E à face da terra... batalhas continuam a ser travadas... contra um inimigo invisível, no momento... se surgiu naturalmente ou foi criado... ainda ficará no âmbito da especulação... pois todos os dias, se sabe um pouco mais, sobre esta virusice, que veio assombrar o mundo...
    Estimo que se encontre bem, assim como todos os seus, Agostinho! Por aqui... já na batalha... para que esta bichice, não faça estragos, cá em casa... com mãe, por perto, os cuidados têm de ser ultra redobrados... já estou na fase... em que tudo o que seja compra de supermercado, seja lavada, item por item, com gel de banho... pois o álcool... está reservado para usar na rua, para as mãos... e no momento... deve estar quase ao preço do ouro... pois no outro dia, já constava que teria tido uma subida de preço de 1000%...
    Enfim!... Mudam-se as guerras... mudam-se as vontades... e as de agora... fazem o pessoal ir todo a correr para o supermercado, comprar papel higiénico... sinais da involução dos tempos... nestes dias de muita guerra contra o vírus... pouca paz de espírito... e muita vontade, de tantos, em fazer desta virusice o novo pet de estimação... com tanta gente ainda sem ter a noção da gravidade da situação... e prontos para ajuntamentos e deslocações, sem interrupção das cadeias de contagio... no fim de semana... foi lindo, ver uma fila imensa de inconscientes na Ponte... que queriam ir fazer a quarentena ao solinho, num lado qualquer!... Mas este pessoal, não tem noção do que um vírus, significa?... Aparentemente não! O ser humano, mesmo repleto de informação... ainda assim, não sabe o que fazer com ela... mas o que quer que faça... já deu para ver, que tem mesmo motivos para usar muito papel... de 2, 3, ou 4 folhas... :-))
    Beijinhos! E cuide-se bem, Agostinho!
    Ana

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  31. Que ideia a de dedicares um poema, para mais, belo, à guerra e ao suicídio. Que sensação de vazio, de angústia... Não consegui entender...

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