terça-feira, 21 de abril de 2015

A força das palavras

Couple-Riding-Black-and-Violet-Wassily-Kandinsky-1906
http://www.dailyartfixx.com/
Primeiro, sem saber, inventei e,
afinal, as palavras já prontas.
Mas eu inventei-as e,
para não as esquecer,
escrevi-as no meu chão
antes de as dizer, e,
ao dizê-las, peregrinei
as mãos nas evidências
escaldantes das vogais,
humedecidas-emudecidas
no vermelho da língua, e
em chegando ao fim,
escritas ditas feitas,
as palavras prontas prenhes
ressuscitaram o que parecia
a morte. 
Sem saber. Acreditei.

               

                                                                                             hajota

terça-feira, 14 de abril de 2015

Carpe diem

Não adianta moer mais a cabeça
em conjugações de tom imperativo
expedições cuidadosas nas ordens
na exploração noturna da harmonia
havendo problemas de hardware

Não adianta consumir erudição
escolástica de latim imagético
em libidinosos e esconsos becos
na procura do par que lhe compete
havendo problemas de hardware

Não adianta zelo de semiótica  
a mensagem não segue até os pés
se  o coração está em fibrilhação
e perros os pés justos e perfeitos
haverá problemas de hardware

Não adianta se as deambulações
perdem regularidade que o par
antes uma luva em bilros de linho
agora se aquieta frio e murcho
haverá problemas de hardware

Deixaram de dançar e até andar
inertes sem préstimo limitados
a excrescências existenciais
pornografia de formações tróficas
O fio que os liga ao coração quebrou

O mal revelou-se tão subtilmente
na roupa - lã peúgas botas pijama -
em progressão livre dentro da cama
roubando espaço ao traçado das curvas
e no entanto frios frios os pés

Não adianta pois esperar milagres
promessas cleópatras e salomés
danças tentações som de sinfonias
a não ser romances epifanias
nas químicas da molécula azul 

hajota


dali_a_persistência da memória



segunda-feira, 6 de abril de 2015

Cura


woman with eyes closed - lucian freud
Tinha cerradas as janelas
sempre como se noite fosse
dizia que o sol tinha dono
nada sobrava para elas

Todas as luzes apagadas
como se fossem pedras cegas
negras luas novas pintadas
no pó d' areia do deserto

Sem telhado fria indefesa
em casa morava alagada
a chuva miudinha teimava
toldar-lhe o resto da beleza

Com a mão direita espalmada
percorri-a de cima a baixo   
com um beijo quente colei-lhe
a conta que estava quebrada

Chocalhou inocência oculta
com o contágio dum sorriso
abriu-se em febre franca e pura
o sol nasceu no som do riso


hajota

terça-feira, 24 de março de 2015

Herberto Hélder

www.ionline.pt



Andaram hoje todo o dia a dizer
que um poeta, maior que os demais,
deixou este mundo de mortais.
Mas eu não acredito em tais.
Ainda agora ouvi a sua voz profunda,
no tom claro dos imortais,   
o seu metafísico desejo:

"encerrar-me todo num poema,
não em língua plana mas e língua plena"

“já dentro de mim não caibo
já sou maior que mim mesmo”. 



hajota


Nota: em itálico versos de "A morte sem mestre" de Herberto Hélder. Dizem ter falecido ontem em Cascais.

sábado, 21 de março de 2015

O mundo é grande

vieira da silva_la forêt des erreurs_1941


Por réstias riscadas nas entranhas
em emaranhadas encruzilhadas,
do eu, 
separando à força de mãos
o conhecido do ignoto,
não encontro o âmago de ser.


Por mais que me insinue e percorra
os labirínticos ocultos da escuridão,
em mim,
onde dizem haver início e fim,
não encontro nas sinapses
uma mensagem que me descanse.


Para retomar o fôlego volto à luz
que a natureza me deu,
porém, eu,
ao retomar a procura nos espaços 
húmidos vermelhos quentes
detém-me os movimentos um embaraço 
e não encontro o que sou.


Fico perdido sem saber o rumo:
a caverna esconde o finito
e o mundo é grande. O meu; infinito.



hajota

terça-feira, 10 de março de 2015

A queda (?)

http://catingadeporco-cristinocastro.blogspot.pt/2010/09/09

Por entre neblinas de margens
o ouro da palavra precipitou-se
nas alcantiladas escarpas do poder
como areia soprada pelo vento:
queimou-se a esperança do advento.
                                                    
O medonho afirmou-se impoluto
para gloriosos feitos nado,
de raça imaculada, predestinado,

e não passa dum arraçado
traficante malabarista de enganos,
sem pudor multiplicou desgraças,
tornou generosas águas em sais:
do azul resta uma imensidão de ais

e este poema como os demais
lavrado no risco da inutilidade:
uma aspiração de fraternidade.


hajota

domingo, 1 de março de 2015

"Raphael's Triumph of Galatea 02" por Rafael - Wiki
Em grande plano
olhos de criança intactos
películas de pura inocência virgem
são nitrato de prata preservado
do efeito da luz que seduz

Na beira da escarpa
o anjo inacabado espera
que as asas despontem
para o primeiro voo picado
ansiosamente.

Quebra os vidros
desata os espartilhos da matriz?
O filme projeta cenas
da inexorável cor da vida
A cada momento um anjo


hajota