domingo, 22 de janeiro de 2017

Inspiração




Uma certa quantidade de gente à procura

de gente à procura duma certa quantidade


(início do poema de Mário Cesariny com o mesmo título)



Mário Cesariny, linha d´água


-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-



À tarde, antes que o sol se atole
no horizonte da incógnita
fico no sobressalto do encontro.

Sento-me nas pedras gastas
do cais e espero. Confio nela.
A noite há-de trazê-la de volta.

E volta terça, fria, às vezes confusa,
sempre desgrenhada,  mas
com a ânsia de ser tomada.

Penteio-lhe as algas verdes
revoltas, até que o brilho se faça e,
por entre os dedos, escorram

madeixas em linhas de ouro.
E o esteio de mansas bordas
verdes aloire e alargue de águas.

No descaminho dos dias pardos
inspiração é a luz que me guia.


hajota

sábado, 14 de janeiro de 2017

Flores perdidas a manchar a neve






Declaração Universal dos Direitos Humanos 
Artigo 1° Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.  
                   ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~




As pedras da calçada que piso transpiradas
de medo e angústia, a vida
sustida por um ténue fio, o frio
a cortar sem piedade corações.

Lá fora a  luminosa Lua brilha Cheia
para todos, por igual, mas há
uma real diferença fundada na indiferença
não escrita na Lei da humanidade.

Eles e eu com direito à vida,  à liberdade,
ter um chão, na crença da igualdade,
enraizados na razão de sermos irmãos
Que diferença há então?

Eles desesperados sem pé, num mar
de tragédia, fogem da morte
e eu estupidamente sentado, no conforto
da sala, olho aquela  mancha na tv,

que enregela ao cinzel branco dos Balcãs.
Entre estar dentro ou fora, as pedras
da indiferença são corações sem sorte
que piso entre a vida e a morte.

Eu preocupado, entre rimas e rosas,

e  as flores perdidas a manchar a neve!


hajota (12/01/2016) 





Lucian Freud - guy half asleep










sábado, 31 de dezembro de 2016

Ano Novo



Para ganhar um Ano Novo
Que mereça este nome,
Você, meu caro, tem de merecê-lo
Tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
Mas tente, experimente,  consciente.

É dentro de você que o Ano Novo
Cochila e espera desde sempre.


Carlos Drummond de Andrade


~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~


 Na euforia da festa, de forma mais ou menos inconsciente, instintiva, "alinhamos" em encenações que roçam a superstição, como se a vida se resolvesse num passe de mágica, como na fé de ganhar o euromilhóes, a lotaria ou a raspadinha. 
Não esperemos que alguém faça aquilo que nos compete. As palavras  do poeta Carlos Drummond não nos deixam margem para dúvidas. E nós até o sabemos bem...
Contrariamente aos palpites que se vêem por aí (o 2016 foi "mau, péssimo, uma m...") os anos não são Bons nem Maus. Nós temos, em grande medida, a faculdade de os tornar bons ou maus... 
Nesta certeza, faço votos para que todos os meus amigos tenham inspiração, força e saúde no ano 2017 para tocarem a sua vida para a frente.



Edgar Degas


A todos um abraço caloroso, de festa!!! Que a gente não pode viver sem esse calor, a alegria de viver em comunhão.

domingo, 25 de dezembro de 2016

Inquietações


Luís Ferreira Alves, Fotografias em obras de Eduardo Souto de Moura  





O roçagar duma pena aguou-me
o sonho do anjo branco que tive
desfez-se o encanto num instante 
a fugaz ilusão de haver paz


Sem manjedoura vaca  burrinho
a estrela já não desce em Belém
e o menino morre da barbárie 
sob pó e caliça de betão


A indiferença do homem foi capaz!
Como  sustentar então o sonho
se o desvario matou o menino?


                                      hajota


segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Mesmo não acreditando


O destino                             

O destino eram                           
Os homens escuros                    
Que assim lhe disseram:             

- Tu esculpirás Seu rosto     
de morte e agonia                

Sofia de Mello Breyner Andresen, Cristo Cigano 




Paula Rego, the dance




O mundo desarvorado
numa aventura de homens loucos
investidos providencialmente 
pela esterilidade das suas ideias:
nas paredes alastram dores
capilares num rendilhado como teia 
prenunciadores 
dos dias futuros de ruína

A casa toda
vibra de uma estranha emoção
Sento-me no chão
térreo onde fico separadodas coisas 
suspensas na ordem mundana
nas paredes da vida

Olho o relógio do tempo e vejo
o movimento ainda inteiro
o ritmo atómico dos ponteiros
vindo das profundezas
e o susto golfa adrenalina
até que o coração se sincroniza
na cadência original


Mesmo não acreditando 

uma prece um sussurro
pode mudar o mundo
- quem sabe - 
se a folha só 
que no desamparo nega 
o destino cai 
num afago de mãos


         hajota

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Em Pessoa

imagem Google






Entre o sono e o sonho,
Entre mim e o que em mim
É o que eu me suponho,
Corre um rio sem fim.

Fernando Pessoa



















Criatura humana, tão humana que usa chapéu!,
moral e responsável como quer, sem descaminho
percorre em delírio e livre arbítrio
as calçadas da Brasileira e do Martinho.

Personagem criadora de personagens,
indivíduo de múltipla individualidade,
palmilha certezas sem sair da cidade,
finca-se no verso, rio das suas margens.

Sabendo da ignorância do presente
conjuga o verbo em todos os tempos,
no infinito, para não se afogar no poente,
para ser Pessoa de hoje e de sempre

Dizem que morreu há oitenta e um anos,
hoje, de cólica hepática.
Como assim, se magotes trepam a Garrett
e se sentam à sua mesa pelo aroma dum verso!?

30nov2016


                            hajota

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
Nota: não foi editado, na data do óbito de Fernando Pessoa, como era minha vontade, por razões de "logística" .  

terça-feira, 15 de novembro de 2016

A Lua era Sol

Apesar das ruínas e da morte, 
onde sempre acabou cada ilusão, 
a força dos meus sonhos é tão forte, 
que de tudo renasce a exaltação 
e nunca as minhas mãos ficam vazias. 


Sophia de Mello Breyner Andresen




http://www.dn.pt/sociedade/interior/hoje-e-noite-de-superluaha


Sem saber que era o luar
lancei as mãos ao sonho,
ambas, na ambição do momento.
Único!

Toquei-lhe na pele, 
no contorno
do ventre prenhe de leite, 
derramado, 
a brilhar ao de leve: a Lua era Sol!

A Lua cheia de Sol
debruçou-se no meu peito
doído, sonhei ontem

Ao acordar abri a janela
e procurei-a no azul. 
Era Sol que se via, hoje:
raios-versos dum poema,
brilhante. Por ser dia.


hajota