segunda-feira, 25 de julho de 2016

Emulações estivais

O verão solta os cabelos como a mulher
que se ergueu do leito e avança para o espelho,
com as mãos da manhã a viajarem pela sua pele.

Nuno Júdice, A Convergência dos Ventos,        
início de Metamorfoses em Agosto, ed. D. Quixote 



aparição de rosto e fruteira numa praia, Salvador Dali


O sol adensa o sal do mar 
na aparente água transparente  
Transpirada a cristalização faz-se
até que demencia a criatura
em clarões de vermelho febril: 
gera-se o belo a forma pura

Dum gesto de dominação incontido
o frémito cresce em ondas
que se levantam indomáveis
e retalham toda a pele em rios
de margens a espuma bordadas

De manhã a viva cal 
derramada trespassa a vidraça  
E no verão toda da praia ferida
é uma indelével crosta florida
que sabe a sangue e a sal

hajota

terça-feira, 28 de junho de 2016

Hipnose redonda

Vieira da Silva, de Mars à la Lune, pinterest.com






… reticências
na precedência infinita
do vazio inventou-se
o mundo  e
fez-se o mundo 
de coisas e
das coisas ressoaram
nomes e
coloriram-se os nomes
nas palavras e
entenderam gente e
na gente em comunhão
irreal brotou o poeta e
o poeta criou
o vazio e
as reticências do absoluto

sem pontuação nem final


hajota

quarta-feira, 15 de junho de 2016

A perda do paraíso

Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Alberto Caeiro, O Guardador de rebanhos




Sousa Pinto, a macieira partida - http://cct.portodigital.pt/

Penso.
O mundo faz-se na criação
cega e pura, na abstracção,
de que resulta equilíbrio natural


Tenso,
depois, o Autor arma-se de intenção,
enredos, cálculos e sedução
e resvala do luminoso à escuridão.


Propenso
em conceber julgamento
iníquo, invejoso, de alma dura, vem:
- roubaste a maçã do início!

hajota

terça-feira, 31 de maio de 2016

Leituras (im)previstas

As línguas têm sempre veneno para verter.
Jean Molière



Claude Monet




Vejo cataratas a catar
a vida alheia nas letras gordas dos jornais
mais próximas que a vizinha do andar

Espiolham o lúgubre charco
- facas sangue vinganças paixões -
vacuidades condenações de meirinhos da política

Há olhos ávidos almas penadas
e cépticos em movimento perpétuo pendular
masturbatório de anos no mesmo lugar

e outros. Diluídos na persistência inglória
de prender o nada entre os dedos  em ruína
nem pressentem o mal que os mina



hajota

segunda-feira, 16 de maio de 2016

No ventre fecundo da poesia







Deitados na toalha dourada da praia
esperam que o pudor da noite cubra
as sementes do luar que vem na maré
É quando as sereias se soltam das ondas
em gemidos e as algas se emaranham
nos redondos nús na espuma dos afagos 

hajota




-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-




Por trás da serenidade
dos tules convencionais
das inquietações existenciais
a compreensão escorre-nos
por entre os dedos das mãos

e a agitação telúrica das pedras
que dá movimento ao vento
e ao mar o desejo de dar
destino ao desalinho no horizonte

Enquanto isso o humano cresce
livre no ventre fecundo da poesia 

hajota

quinta-feira, 5 de maio de 2016

E se fosse eu?



Choram, no entanto, os que sobrevivem. Agarram-se
às grades do futuro; e ninguém me liberta da sua memória,
enquanto a roda do tempo apodrece no seu eixo de sangue.

Nuno Júdice, A convergência dos Ventos, de Idade de Ferro 
- ed. D. Quixote




Foto de Gilberto Jorge


A porta
é fundamental primordial
antes de tudo e de mais
Ter uma porta é importante
na transposição das paredes
sobretudo sempre e durante
a fuga do medo

A esperança
É importante ter 
manter a esperança na trouxa
e sonhos acoitados 
no fundo dos bolsos
e o corpo decente e quente
sempre e durante
a fuga da morte

E o mais importante:
ter sempre e durante
o caminho da fronteira aberto
e o coração pleno de sorte
na mochila da vida
sempre rumo ao norte



hajota



domingo, 3 de abril de 2016

Leituras

http://ultimas-curiosidades.blogspot.pt/


Eu vejo
para lá do imagino
mel a escorrer do alto
por entre os dedos

Um fio louro de ouro
a derramar-se na vastidão
do (nosso) universo
no amorfismo das coisas
comuns

a dar-lhes a forma 
e alma intemporal
donde irrompe a vida
no tempo de amar

No fim
levo melado o dedo
à boca da certeza
onde até as vírgulas
sabem a sal 

hajota