terça-feira, 13 de setembro de 2016

A_linhas





Dorme descuidado o peito e repousam os pensamentos graves.

Holderlin, Poemas, 1.º verso de Ócio - Ed. Relógio d'Água




David Hockney, Hotel Acatlan, Second Day






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Há vozes desconexas sem face,
sons avulso sem relação,
filamentos como penugem a esvoaçar
em contraluz crepuscular

sem a brusquidão dum arrepio,
preguiçosamente, em harmonia,
um bailado de linhas,
um esboço de rosto
traçado a carvão de agosto

Antes das sombras linhas antes das linhas pontos,
depois, insinuam-se na ideia
da noite, consistentemente,
e adquirem densidade suficiente,
passam a reais, para lá do aparente
a linhas



hajota

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

A escória dos mas

Os de Alexandria,
Com as suas mãos finas
E suas batinas
De carvão de coque,
Dizem-me que toque.

Ruy Cinatti, O Livro do Nómada Meu Amigo, 
1.ª estrofe de Sinal dos Tempos



http://larajacinto.com/




A escória dos mas atravanca-lhe os espaços
onde ousa em liberdade imolar-se
O poeta voa na dúvida mas
quem se sujeita a asas tem
o destino de sonhar rente às lágrimas se
as nuvens precipitam punhais

O poeta voa na dúvida até
quando  mergulha em transe  no som
da imaterialidade dos dedos queimados
no vazio da luz branca dos dias
Sobrevém-lhe o cansaço lasso lavado a sal
de condenado sem dúvida ao eclipse do sol


hajota

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Emulações estivais

O verão solta os cabelos como a mulher
que se ergueu do leito e avança para o espelho,
com as mãos da manhã a viajarem pela sua pele.

Nuno Júdice, A Convergência dos Ventos,        
início de Metamorfoses em Agosto, ed. D. Quixote 



aparição de rosto e fruteira numa praia, Salvador Dali


O sol adensa o sal do mar 
na aparente água transparente  
Transpirada a cristalização faz-se
até que demencia a criatura
em clarões de vermelho febril: 
gera-se o belo a forma pura

Dum gesto de dominação incontido
o frémito cresce em ondas
que se levantam indomáveis
e retalham toda a pele em rios
de margens a espuma bordadas

De manhã a viva cal 
derramada trespassa a vidraça  
E no verão toda da praia ferida
é uma indelével crosta florida
que sabe a sangue e a sal

hajota

terça-feira, 28 de junho de 2016

Hipnose redonda

Vieira da Silva, de Mars à la Lune, pinterest.com






… reticências
na precedência infinita
do vazio inventou-se
o mundo  e
fez-se o mundo 
de coisas e
das coisas ressoaram
nomes e
coloriram-se os nomes
nas palavras e
entenderam gente e
na gente em comunhão
irreal brotou o poeta e
o poeta criou
o vazio e
as reticências do absoluto

sem pontuação nem final


hajota

quarta-feira, 15 de junho de 2016

A perda do paraíso

Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Alberto Caeiro, O Guardador de rebanhos




Sousa Pinto, a macieira partida - http://cct.portodigital.pt/

Penso.
O mundo faz-se na criação
cega e pura, na abstracção,
de que resulta equilíbrio natural


Tenso,
depois, o Autor arma-se de intenção,
enredos, cálculos e sedução
e resvala do luminoso à escuridão.


Propenso
em conceber julgamento
iníquo, invejoso, de alma dura, vem:
- roubaste a maçã do início!

hajota

terça-feira, 31 de maio de 2016

Leituras (im)previstas

As línguas têm sempre veneno para verter.
Jean Molière



Claude Monet




Vejo cataratas a catar
a vida alheia nas letras gordas dos jornais
mais próximas que a vizinha do andar

Espiolham o lúgubre charco
- facas sangue vinganças paixões -
vacuidades condenações de meirinhos da política

Há olhos ávidos almas penadas
e cépticos em movimento perpétuo pendular
masturbatório de anos no mesmo lugar

e outros. Diluídos na persistência inglória
de prender o nada entre os dedos  em ruína
nem pressentem o mal que os mina



hajota

segunda-feira, 16 de maio de 2016

No ventre fecundo da poesia







Deitados na toalha dourada da praia
esperam que o pudor da noite cubra
as sementes do luar que vem na maré
É quando as sereias se soltam das ondas
em gemidos e as algas se emaranham
nos redondos nús na espuma dos afagos 

hajota




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Por trás da serenidade
dos tules convencionais
das inquietações existenciais
a compreensão escorre-nos
por entre os dedos das mãos

e a agitação telúrica das pedras
que dá movimento ao vento
e ao mar o desejo de dar
destino ao desalinho no horizonte

Enquanto isso o humano cresce
livre no ventre fecundo da poesia 

hajota