segunda-feira, 31 de julho de 2017

A distância que a mão alcança



Por vezes chega um rumor
um surdo rumor do tempo.
As pontes se desmoronam
as pétalas e as palavras
de repente sem sentido
as árvores onde o vento
deixava um frio assobio.
Por vezes chega um cinzento
um surdo absurdo vazio

Manuel Alegre, Doze Naus, ed. D. Quixote



Amber Marie Stifflemire, Blue Birds




Na vertigem virtual da luz a vida cega
e a máquina já não obedece ao homem
é a uniformização estúpida  
o absurdo que o reduz 

Não há algoritmo que perceba o sabor
da maresia o choro sal a dor
nem sequer o brilho escancarado do sorriso
que sela a (in)genuidade dos puros  

Contento-me então nos elementares sentidos
no tactear a escorrência da tinta que pinta
montes e vales na fluência da flauta
do rouxinol  nos confins do silvado
no serpentear do rio ora manso ora irado
no incenso denso suave intenso  

Na paixão secreta que me acolhe
resgatado venho do pecado original
Curado na sombra dos dias tórridos
confino-me à insignificância gestual
da distância que a mão alcança
esboçando o contorno imponderável
da forma do corpo imperfeito

Espero pelas marés vivas de Agosto
Não não consigo conter-me fechado
Abro-me atravessado nesta página por arar
por semear e já vejo no verso e no reverso
uma espuma a adejar num sopro de vento
a caneta a água os lagos derredor:

a esfera roda  e obedece a mão:
do campo branco em que escrevo
eleva-se uma subtil fragância d’ alma
E assim me basto

hajota 


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Nota

Ao voltar, depois dum longo período de abstinência, sem editar qualquer trabalho aqui, não quero deixar de agradecer a todos os amigos as manifestações de simpatia que me fizeram chegar.  
Há um tempo do antes e um do depois. A vida muda e muda-nos a cada instante. A mim também. Enquanto nos podemos adaptar, tudo bem. Eu estou bem.
Um abraço, amigos.

terça-feira, 25 de abril de 2017

25 de Abril


Esta é a madrugada que eu esperava
o dia inicial inteiro e limpo
onde emergimos da noite e do silêncio
e livres habitamos a substância do tempo


                         Sophia de Mello Breyner Andresen
                                in "o nome das coisas"       








Marcadamente neste dia
uma certa rebeldia
no desejo de liberdade
ficou até bem expresso  
ergui a mão esquerda
que não mente
diz o que sente


                                                   hajota                   











quarta-feira, 29 de março de 2017

Nota blue

Quando vier a primavera,
se eu já estiver morto,
as flores florirão da mesma maneira
e as árvores não serão menos verdes que na primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Alberto Caeiro, estrofe de Poemas Inconjuntos





imagem jimmy-hoffman





À cautela anotei a nota blue 
num papelucho amarrotado
que me soou a epifania
Foi o que valeu: os tira-olhos
adivinhavam-se no ar
Eu cego num blue amassado?
Escrevi-o pela manhã

Ainda ontem chovia
e hoje terça acordei olá bom dia
sem estores nem cortinas

Entrou-me o dia em Sol
na janela franca e senti maresia
no tom do vento trazido do sul
Humedeceu-se a vidraça ficou baça 
soube-me a ar de mim


hajota

terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

O idílio durou meses

É estranho não mais desejos desejar. Estranho,
passar a ver sem conexão, disperso pelo espaço,
tudo o que antes tinha unidade.

As Elegias de Duíno, da1ª Elegia, Rainer Maria Rilke



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              ilustração de M.ª Rita (8 anos)










Numa manhã grisalha não a encontrei.
Porquê não sei, presumo:
as cores não se afeiçoam ao inverno.


O idílio durou meses, porém,
inopinadamente parou,
sem  denúncia, arrufo ou, sequer, indício.


Logo agora que tinha nas mãos
o jeito de a explorar, apartando-lhe
a delicada roupa, com o fervor da paixão:


grão a grão os lábios, a língua,
sorvendo o vermelho sumo.
O vermelho da romã.



hajota














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Nota: 
ando em periclitante e irregular andamento blogueiro, digamos que motivacional. Expresso os meus sinceros agradecimentos pelas manifestações de preocupação que me têm chegado. 
O meu estado de saúde? Poderei dizer que não estou mal nem bem. Estou em esperançoso processo de recuperação. 
A todos o meu obrigado.

domingo, 22 de janeiro de 2017

Inspiração




Uma certa quantidade de gente à procura

de gente à procura duma certa quantidade


(início do poema de Mário Cesariny com o mesmo título)



Mário Cesariny, linha d´água


-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-



À tarde, antes que o sol se atole
no horizonte da incógnita
fico no sobressalto do encontro.

Sento-me nas pedras gastas
do cais e espero. Confio nela.
A noite há-de trazê-la de volta.

E volta terça, fria, às vezes confusa,
sempre desgrenhada,  mas
com a ânsia de ser tomada.

Penteio-lhe as algas verdes
revoltas, até que o brilho se faça e,
por entre os dedos, escorram

madeixas em linhas de ouro.
E o esteio de mansas bordas
verdes aloire e alargue de águas.

No descaminho dos dias pardos
inspiração é a luz que me guia.


hajota

sábado, 14 de janeiro de 2017

Flores perdidas a manchar a neve






Declaração Universal dos Direitos Humanos 
Artigo 1° Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.  
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As pedras da calçada que piso transpiradas
de medo e angústia, a vida
sustida por um ténue fio, o frio
a cortar sem piedade corações.

Lá fora a  luminosa Lua brilha Cheia
para todos, por igual, mas há
uma real diferença fundada na indiferença
não escrita na Lei da humanidade.

Eles e eu com direito à vida,  à liberdade,
ter um chão, na crença da igualdade,
enraizados na razão de sermos irmãos
Que diferença há então?

Eles desesperados sem pé, num mar
de tragédia, fogem da morte
e eu estupidamente sentado, no conforto
da sala, olho aquela  mancha na tv,

que enregela ao cinzel branco dos Balcãs.
Entre estar dentro ou fora, as pedras
da indiferença são corações sem sorte
que piso entre a vida e a morte.

Eu preocupado, entre rimas e rosas,

e  as flores perdidas a manchar a neve!


hajota (12/01/2016) 





Lucian Freud - guy half asleep










sábado, 31 de dezembro de 2016

Ano Novo



Para ganhar um Ano Novo
Que mereça este nome,
Você, meu caro, tem de merecê-lo
Tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
Mas tente, experimente,  consciente.

É dentro de você que o Ano Novo
Cochila e espera desde sempre.


Carlos Drummond de Andrade


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 Na euforia da festa, de forma mais ou menos inconsciente, instintiva, "alinhamos" em encenações que roçam a superstição, como se a vida se resolvesse num passe de mágica, como na fé de ganhar o euromilhóes, a lotaria ou a raspadinha. 
Não esperemos que alguém faça aquilo que nos compete. As palavras  do poeta Carlos Drummond não nos deixam margem para dúvidas. E nós até o sabemos bem...
Contrariamente aos palpites que se vêem por aí (o 2016 foi "mau, péssimo, uma m...") os anos não são Bons nem Maus. Nós temos, em grande medida, a faculdade de os tornar bons ou maus... 
Nesta certeza, faço votos para que todos os meus amigos tenham inspiração, força e saúde no ano 2017 para tocarem a sua vida para a frente.



Edgar Degas


A todos um abraço caloroso, de festa!!! Que a gente não pode viver sem esse calor, a alegria de viver em comunhão.